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Coronavírus

Sem auxílio, renda dos mais pobres deve cair quase 25%

Sem ajuda do governo, e em um cenário de inflação em alta e de desemprego, classes D e E devem perder R$ 48 bi em recursos

31 jan 2021 - 13h06
(atualizado às 14h50)
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Moradora da comunidade de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, a catadora de latinhas para reciclagem Célia da Costa Gomes, de 40 anos, mãe de quatro filhos, com idades de 4, 6, 7 e 10 anos, está preocupada. O leite das crianças e a "mistura" para preparar as refeições acabaram. O gás de cozinha está no fim. A despensa vazia coincide com o fim do auxílio emergencial.

Movimento na região da Rua 25 de Março, área de comércio popular na região central de São Paulo, neste sábado, 13
Movimento na região da Rua 25 de Março, área de comércio popular na região central de São Paulo, neste sábado, 13
Foto: FÁBIO VIEIRA/FOTORUA / Estadão Conteúdo

O benefício pago pelo governo desde abril aos brasileiros mais vulneráveis, em razão da pandemia, pode ter uma nova rodada. Mas tudo depende de negociações com o Congresso. Enquanto esse imbróglio não se resolve, a partir deste mês a renda de Célia cai para R$ 410 com o Bolsa Família. Até dezembro, ela recebia R$ 600 por mês por conta do auxílio emergencial.

"Esses R$ 200 a menos fazem muita diferença para quem tem criança", diz a catadora, que mora numa casa cujo aluguel é pago pela Prefeitura. Antes da pandemia, Célia conseguia chegar a ter renda mensal total de R$ 600, somando o que conseguia com a venda de material para reciclagem e o Bolsa Família. Por semana, tirava R$ 50 com latinhas. Hoje, porém, até a reciclagem está difícil. Aumentou muito o número de catadores e ela vê crianças revirando o lixo nas ruas de São Paulo em busca de latinhas. "Sem emprego e sem auxílio (emergencial) fica difícil", afirma a catadora.

Célia e os filhos são uma das 40 milhões de famílias das classes D e E. Com renda mensal de até R$ 2,6 mil, eles correspondem a 53% dos domicílios brasileiros. Com o fim do auxílio emergencial, inflação em alta, especialmente dos alimentos, e desemprego no maior nível dos últimos anos, essa deve ser a camada da população que mais vai perder renda disponível para consumo neste ano, se o benefício do auxílio não for retomado, aponta um estudo da Tendências Consultoria Integrada. Renda disponível é o dinheiro que sobra para gastar depois de comprar itens básicos.

Renda comprometida

O estudo mostra que as classes D e E devem perder quase um quarto da renda disponível (23,8%) em termos reais em relação a 2020. Serão R$ 48 bilhões a menos circulando entre os mais pobres. No ano passado, no entanto, esse foi o estrato social que teve o maior ganho de renda disponível, com avanço de 16,1% ante 2019 por conta dos auxílios do governo.

Se o quadro for mantido, essa será a maior queda na renda disponível para as classes D e E da série iniciada em 2008. "Não chega nem perto do recuo de 5,4% que houve em 2015", diz Lucas Assis, um dos economistas responsáveis pela projeção.

O estudo, que levou em conta expectativa de inflação ao consumidor (IPCA) para este ano de 3,4%, crescimento da economia (PIB) de 2,9% e taxa de desemprego atingindo 15,1%, prevê recuo da renda disponível, de 3,7% da população brasileira como um todo em 2021, depois do crescimento de 1,1% em 2020. Exceto os mais ricos, a classe A com um avanço na renda disponível de 1,6% esperado para 2021, os demais estratos devem perder capacidade de consumo. Mas o tombo maior é esperado para os mais pobres.

Normalmente 80% da renda das classes D e E são destinados à compra de itens básicos. O que sobra é gasto com outros produtos e serviços. E, neste ano, essa sobra - R$ 156 bilhões - deve ser a menor dos últimos 13 anos.

Segundo Assis, a renda disponível dos mais vulneráveis deve ser atingida por várias frentes. Uma delas é a persistente alta da inflação dos alimentos, itens que pesam mais no orçamento dessas famílias. Além disso, sabe-se que o desemprego castiga mais os pobres, apesar de não existir uma taxa por camada social. De toda forma, o principal fator apontado pelo economista para esse choque na renda disponível das classes da base da pirâmide social é o fim, por ora, do auxílio emergencial.

 

Nordeste

O reflexo da perda de capacidade de consumo dos mais pobres deve, segundo o economista, afetar mais as vendas do varejo das Regiões Norte e Nordeste do País, onde há maior concentração da população das classes D e E.

"Sentimos uma esfriada no ritmo de vendas em janeiro, mas continuamos crescendo", conta Van Fernandes, presidente do Grupo Vanguarda, de supermercado e atacarejo, com 2 lojas no Maranhão e 22 no Piauí.

A rede, que faturou no ano passado R$ 750 milhões com as bandeiras Carvalho Super e Carvalho Mercado e é uma das maiores da região, sentiu o impacto nas vendas especialmente nas lojas de atacarejo no interior do Maranhão, nas cidades Bacabal e Codó. "Lá o fim do auxílio fez uma grande diferença", afirma a empresária.

Para alavancar os negócios, Van conta que desde o início deste mês ampliou o prazo de pagamento das compras feitas com o cartão da empresa. Os 40 dias sem acréscimo foram mantidos. Mas agora é possível parcelar em até três vezes sem juros as compras realizadas em todos os dias da semana, possibilidade antes restrita a um dia determinado.

Outra saída foi negociar com fornecedores descontos em parte dos itens da cesta básica. Os abatimentos são bancados pela indústria e pelo varejo. "Já que não tem tanto dinheiro circulando na economia, preciso reduzir a margem para manter o faturamento e o consumidor."

David Fiss, diretor de Serviços ao cliente e negócios da consultoria Kantar, especializada em consumo, diz que hoje a indústria está preocupada com promoção e o objetivo é manter o consumidor comprando, mesmo com a renda disponível menor. "Há indústrias que baixam o preço de uma categoria de produto e aumentam de outra para manter o negócio saudável." Existem também fabricantes que optam por reduzir o tamanho das embalagens para oferecer um preço acessível ao bolso mais apertado do consumidor.

Setores do varejo que se deram bem já sentem a freada econômica

Especialistas em consumo dizem que primeiro trimestre será difícil para o comércio varejista, que em 2020 surfou na onda das mudanças de hábito de consumo e no auxílio emergencial.

"O choque positivo que houve no varejo baseado nesses dois pilares se esgotou", afirma o economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio de Bens (CNC), Fabio Bentes.

Para David Fiss, diretor da consultoria Kantar, dependendo do segmento, o consumo vai patinar por causa do fim do auxílio, da inflação alta e da lentidão na velocidade da imunização da população, hoje passaporte para a retomada da atividade.

Vendas de itens de limpeza e bebidas, por exemplo devem crescer, mas materiais de construção, eletrônicos, móveis vão recuar. "Há uma freada nos segmentos que se deram bem e é difícil esperar uma nova onda de consumo desse itens daqui para frente", diz Bentes.

Estadão
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