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Coronavírus

'O negacionismo atrapalha a adoção de medidas sanitárias', diz psicanalista da USP

Para Daniel Kupermann, vale negar a mortalidade para se viver. O problema é quando isso se torna uma política de Estado

30 mai 2021 - 17h01
(atualizado em 1/6/2021 às 08h30)
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SÃO PAULO - Mesmo com o País caminhando para a marca de 500 mil mortes em decorrência da pandemia da covid-19, cenas de aglomeração e um certo descaso com os protocolos sanitários podem ser flagrados quase diariamente. Por que muitos se sentem ainda invulneráveis ao vírus? Como podemos explicar esse negacionismo que parece nos rodear?

Para responder essas e outras perguntas, o Estadão conversou com Daniel Kupermann, psicanalista, professor livre docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do CNPq e presidente do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi. Kupermann é autor de vários livros, com destaque para a coordenação da edição brasileira de Psicanálise e Vida Covidiana: desamparo coletivo, experiência individual (Ed. Bluche).

"Se a gente acordar achando que vai morrer, a vida vira um inferno. O negacionismo é um processo que faz parte da nossa constituição psíquica normal. Cada um de nós nega a nossa mortalidade para poder viver. Mas, apesar disso, buscamos, racionalmente, as condutas mais adequadas, como cuidar da saúde, fazer ginástica, se tratar e etc.. Um nível de negacionismo é necessário. O problema é quando esse negacionismo vira uma política de Estado, quando o negacionismo transforma-se em discurso oficial", disse Kupermann. "O negacionismo institucionalizado cria uma ilusão socialmente compartilhada de que nada vai nos acontecer, que não precisamos tomar as medidas preventivas sanitárias, que a vida está normal", completou.

O psicanalista divide o negacionismo em três vertentes: ilusório, hipócrita e pragmático. "O negacionismo ilusório é aquele que é mais universal. É esse negacionismo que nos torna onipotentes ("isso nunca vai me acontecer") e oniscientes (que é o que faz surgir teorias da conspiração e remédios milagrosos). É o negacionismo ilusório, por exemplo, que faz o presidente levantar uma caixa de cloroquina como se fosse a taça de uma Copa do Mundo".

Mesmo reconhecendo o negacionismo como algo próprio do ser humano, Kupermann aponta a exacerbação dessa característica como fruto da nossa "paixão pela ignorância" "O processo civilizador é um trabalho permanente. Ele é um trabalho de combate à paixão pela ignorância. O negacionismo é constitutivo, mas o nosso amor pelo conhecimento também", afirmou. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

O Brasil está caminhando para 500 mil vítimas fatais da covid-19. Ainda assim, existe um comportamento de parcela da sociedade que parece reforçar a ideia do "isso nunca vai acontecer comigo". O que leva a esse tipo de pensamento e comportamento?

"Isso nunca vai acontecer comigo" é uma formulação preciosa. Freud (Sigmund Freud, pai da psicanálise) usa essa formulação em um texto em que ele trabalha a figura do herói. Na nossa tradução, essa formulação aparece como "nada vai me acontecer" - em um texto sobre a figura do herói ficcional. Vamos colocar assim: em um filme do 007 ou do Tom Cruise, os personagens principais nunca vão morrer, a gente sabe disso. Nos identificamos narcisicamente com isso. E por que o herói ficcional nos seduz? Exatamente porque queremos acreditar que "nada vai me acontecer" e que "somos indestrutíveis". Isso faz parte da nossa constituição subjetiva, faz parte do nosso narcisismo primário. As crianças pequenas vestem roupas de super-heróis aos 3 , 4 anos e encarnam isso. A brincadeira para uma criança tem estatuto de realidade psíquica. Essa ideia de que "nada vai me acontecer" faz parte da nossa constituição infantil.

Ou seja, admitir que somos vulneráveis vai contra essa constituição.

Freud se refere a isso como "idealização". Nós investimos em objetos que são idealizados. E o primeiro objeto da nossa idealização é o nosso próprio eu. A gente também transporta isso para Deus - com a ideia de que "Deus nos protege". Essa ilusão implica em uma negação da vulnerabilidade humana, da finitude humana. Trata-se de um paradoxo - já que essa negação é fundamental. A gente nunca acredita que vai morrer. Tem uma frase do Freud que diz "não há inscrição da morte no inconsciente". A gente sabe que vai morrer racionalmente, mas na nossa experiência psicológica a gente nega. Agora, é preciso dizer que existem graus diferentes de negação.

E quais seriam?

Tem uma frase do psicanalista francês Octave Mannoni que diz: "Eu sei, mas mesmo assim..." A gente sabe que o vírus existe, mas mesmo assim cada um tem o seu grau de negacionismo. Tem quem não põe o pé na rua, tem gente que vai apenas ao mercado ou à farmácia, tem quem pega avião e tem aqueles que vão para o bar. Essa defesa é necessária para viver. Se a gente acordar pensando que vai morrer, a vida vira um inferno. Esse é um processo que faz parte da nossa constituição psíquica normal. Cada um de nós nega a nossa mortalidade para poder viver. Mas - e isso é importante - buscamos, racionalmente, as condutas mais adequadas para se proteger, como cuidar da saúde, fazer ginástica, se tratar. Um nível de negacionismo é preciso. O problema é quando isso vira uma política de Estado, quando o negacionismo transforma-se em discurso oficial.

Esse é o nosso estágio no Brasil?

O problema é quando o negacionismo se torna uma visão de mundo. No nosso caso, uma visão de mundo governamental, institucionalizada. Por que isso é um problema? Porque isso confunde as pessoas. É como se isso provocasse o incremento do nosso processo de defesa (que não deixa de ser infantil). Ele cria uma ilusão socialmente compartilhada de que nada vai nos acontecer, que não precisamos tomar as medidas preventivas sanitárias, que a vida está normal. O negacionismo institucionalizado aumenta o nosso lado infantil e ilusório. A gente começa a duvidar das próprias percepções.

Esse negacionismo pode ser classificado? Ele é um tipo, uma cepa específica do negacionismo?

Falamos até agora de um negacionismo ilusório, que é aquele mais universal. É esse negacionismo que nos torna onipotentes ("isso nunca vai me acontecer") e oniscientes (que é o que faz surgir teorias da conspiração e remédios milagrosos). É o negacionismo ilusório que faz o presidente levantar uma caixa de cloroquina como se fosse a taça de uma Copa do Mundo. Neste tipo de nagacionismo, precisamos de um bode expiatório. Quando você funciona com a idealização, a dimensão da crítica é abolida - e, normalmente, deslocada para uma agressividade contra um bode expiatório. Por isso, os negacionistas falam tanto em vírus chinês.

É isso que vivemos no Brasil hoje?

O negacionismo ilusório brasileiro tem um elemento de virilidade. Uma ideia de seleção natural, de que o vírus vai poupar os mais fortes e de que a culpa é de quem morre. Esse negacionismo dificulta até o luto. O morto vira o culpado. Ele morreu porque ele é fraco. Esse mito da virilidade ficou escancarado naquela manifestação de motoqueiros em defesa do presidente. Mas, o que a gente vive no Brasil hoje é uma confusão de línguas. A ciência diz uma coisa, o presidente diz outra, a religião diz outra... e o cidadão vai ficando confuso. As autoridades sociais dizem coisas distintas. Não existe um consenso baseado naquilo que sustenta nossa sociedade. É o negacionismo institucionalizado que cria essa confusão.

A quem serve essa confusão?

Serve para desresponsabilizar os órgãos, as autoridades, que deveriam proteger os cidadãos. Se eu não sei a origem do problema, eu não aponto o responsável. Isso é o que a gente está vendo no Brasil. Por isso, o presidente disse que não tem nada a ver com isso, que "as pessoas morrem mesmo ou que todo mundo vai morrer um dia". O objetivo é causar confusão. E essa confusão é traumática.

Essa confusão é o que faz as pessoas se aglomerarem ao primeiro sinal de melhora ou de uma primeira dose de vacina?

Existe um cansaço que é natural do ser humano, que é o cansaço da renúncia. Não aguentamos renunciar por muito tempo aos prazeres, à satisfação funcional. Todo mundo que faz dieta sabe disso. A pandemia nos exige uma espécie de dieta social. Não podemos interagir. Interagir com outro é uma forma de prazer. Tem um limite para aquilo que o ser humano aguenta renunciar. Por isso, a gestão das medidas sanitárias funciona dessa maneira: melhorou um pouco, vamos nos expor; piorou, regredimos para uma fase anterior. O objetivo das medidas sanitárias não é transformar a vida em algo impossível. O objetivo é que ela seja possível, mas com respeito aos cuidados mínimos. O problema é que o negacionismo institucional produz uma falta de referência daquilo que é verdade. Por isso, muita gente abre mão de qualquer prudência. O negacionismo atrapalha a adoção do razoável. O problema não é abrir e fechar comércio. A gestão é que precisa ser prudente e seguir os ditames da ciência.

Quando o senhor fala em negacionismo, não está falando de uma coisa só.

O ilusório é a base. No Brasil, encontramos duas derivações. Existe, por exemplo, negacionismo hipócrita. Ele aparece nas classes mais favorecidas, empresários, comerciantes e políticos. Eles protegiam a si mesmo e a suas famílias, mas mantinham um discurso de que a economia não podia parar. Ou seja, se protegiam, mas o discurso público era outro. A lógica apenas baseada no ponto de vista econômico não se sustenta. É uma lógica hipócrita, uma recusa à empatia. O negacionismo hipócrita pressupõe que a vida do trabalhador importa menos do que a do empresário ou do político.

O que chamamos hoje de turismo de vacina pode ser fruto desse negacionismo hipócrita?

O turismo da vacina é uma manifestação do negacionismo hipócrita. Por isso, muitos que teriam condições de viajar para se vacinar não fazem isso por questões éticas. O negacionista hipócrita não faz essa critica. O mesmo vale para quem inventa comorbidades. Para quem tem senso ético, a pandemia mostrou que estamos todos no mesmo barco.

E qual seria a segunda derivação deste negacionismo?

Trata-se do negacionismo pragmático. Esse é o negacionismo das classes menos favorecidas. Pessoas que recusaram de início a possibilidade de se cuidar porque a máscara era cara, álcool em gel era caro, porque precisava trabalhar de qualquer maneira, porque mora em uma comunidade sem saneamento básico...Esse negacionismo pragmático fez com que muitos se identificassem com o agressor, com a ideia de que algumas vídas valem menos. Além disso, ele vem do "deixa a vida me levar". Esse negacionismo serviu e ainda serve para isentar políticos de suas responsabilidades, por exemplo.

Então, estamos cercados pelo negacionismo e ele seria algo inescapável?

A origem dele é a nossa paixão pela ignorância. Principalmente no Ocidente, o processo civilizador é um trabalho permanente. Ele é um trabalho de combate à paixão pela ignorância. O negacionismo é constitutivo, mas o nosso amor pelo conhecimento também. A tendência de negar a realidade, a paixão pela ignorância, é o que move os fundamentalismos. Mas nós temos também o amor ao saber, à ciência e à arte. Temos essas duas forças dentro de nós. Uma está a serviço de Thanatos (a morte); a outra está a serviço de Eros (a vida). Freud trabalha esse dualismo individualmente e coletivamente. A gente não é só a paixão pela ignorância. Nosso processo de sair da infância e se tornar um sujeito ético nos mostra isso. Nós podemos produzir um tipo de laço social, uma comunidade tolerante para exercitar o prazer de viver.

Estadão
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