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Coronavírus

Negacionismo prevalece no País mesmo com piora da pandemia; especialistas explicam por quê

'O negacionismo floresce em estado de individualismo muito forte - em que a pessoa fica possuída por um delírio de que ela é especial - quanto em estados de massificação muito forte, por adesão ao grupo', diz psicanalista

20 mar 2021 - 14h10
(atualizado em 21/3/2021 às 15h54)
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Na microrepresentação da sociedade brasileira que é o Big Brother Brasil, a participante Sarah Andrade trouxe à tona na semana passada uma faceta do negacionismo em relação aos riscos da covid-19 que é protagonizado por parte da população. Ela contou que estava em uma festa quando recebeu uma ligação da produção do programa. "Quando me ligou para a entrevista, falou para mim: 'Pandemia não existe pra você? Ninguém tá morrendo pra você?' Oxi... e eu: 'Eu não tô sentindo nada'", disse Sarah, rindo.

Ela foi criticada nas redes sociais, mas seu comportamento está longe de ser algo estranho. Pelo contrário, como revelam as festas clandestinas que proliferam desde o fim do ano por todo o País. O que parece fazer menos sentido é por que esse negacionismo prevalece no Brasil mesmo quando a pandemia atinge seu pior momento e mais de 2 mil pessoas morrem em média, por dia.

Para especialistas que se debruçam sobre o fenômeno no País, no entanto, uma conjunção de fatores tem colaborado para que o negacionismo - que vai muito além da atitude de Sarah - siga forte e acabe minando os esforços para combater a pandemia de covid-19.

Por conceito, ser um negacionista é negar as evidências estabelecidas como consenso pelo conhecimento científico. E isso se caracteriza não apenas por ir a festas num momento em que se prega o isolamento social. É negacionismo, por exemplo, achar que existe um tratamento precoce contra a covid-19, mesmo quando diversas pesquisas científicas já mostraram que nem cloroquina, nem invermectina têm efeito contra a doença.

É negacionismo menosprezar a gravidade da doença e achar que não vai matar os jovens, quando cada vez mais jovens estão internados e morrem. E também é negacionismo não confiar na vacina.

O psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, afirma que o negacionismo que estamos observando no Brasil tem alguns "ingredientes peculiares" que talvez não sejam reproduzíveis.

Individualismo e o poder do grupo

"O negacionismo floresce tanto em estado de individualismo muito forte - em que a pessoa fica possuída por um delírio de que ela é especial e se persuade de que tudo isso vai protegê-la - quanto em estados de massificação muito forte. É o negacionismo por adesão ao funcionamento de um grupo. Muitas pessoas aparentemente reforçam e aumentam seu negacionismo para se vincular a um determinado grupo, para não se sentirem alvo de represália. E o bolsonarismo instrumentaliza isso o tempo todo", afirma.

"Os negacionistas subiram ao poder no Brasil com essa ilusão de que, em grande número, eles não podem estar errados. O bolsonarismo é esse fenômeno de confrontação da morte. E a morte é a fonte principal de conflito para o ser humano, de encarar a finitude", diz o psicanalista.

Segundo ele, no contexto da pandemia estamos falando, por um lado, de um "hiperindividualismo" - como é o caso de quem vai para as festas -, e por outro de um negacionismo como efeito de funcionamento social. "Há aqueles que entendem sua vida como o domínio do seu corpo. Entendem que podem abusar e não se veem como parte de um processo social. Acham que, no máximo, estão somente se colocando em risco, mas não o outro", afirma.

"Mas a questão social envolve o comportamento de uma parte importante da nossa sociedade que nunca teve voz, se sente legada, não acolhida, não reconhecida. É o nosso déficit de cidadania. Essa população vai aplicar sobre o outro o que ela entende que sofreu. Vai negar a ciência, as universidades, o jornalismo. 'Vou negar tudo que eu sinto e interpreto que um dia me negou'", argumenta.

Dunker explica que a aparente insensibilidade diante de quase 300 mil mortes se vale de um fenômeno de acomodação cognitiva. "É mais ou menos assim: vai se aumentando aos poucos o peso sobre um camelo. No final ele está transportando 3 a 4 vezes o peso dele, mas se colocasse tudo de uma vez ele não aguentaria. As taxas de mortalidade foram se distendendo ao longo do tempo e do espaço pelo País. A tragédia não foi sentida como um impacto só de uma vez."

Ele afirma que as pessoas vão se mantendo nas suas bolhas e não são afetadas pela realidade, até que a realidade as alcança. "E aí nos consultórios vamos catando os pedaços, os cacos, porque aí o efeito é devastador."

Sociologia da ignorância

Para o sociólogo Renan Leonel, pesquisador do Instituto Federal Suíço de Tecnologia em Zurique - que passou a investigar no ano passado, no início da pandemia, como estava se dando esse processo de negação da ciência -, se instaurou um movimento no Brasil que pode ser analisado pela chamada "sociologia da ignorância".

Ele explica que se trata de uma "produção de desinformação e mecanismos de descrédito da ciência oficial em um ambiente de caos, sem controle, que acabou comprometendo os próprios instrumentos de produção do conhecimento".

Após analisar artigos de jornais de grande circulação do Brasil, dos Estados Unidos e do Reino Unido com um colega da Universidade Columbia (EUA), ele propôs que estamos vivendo no Brasil a construção coletiva de "três camadas" de "imaginários patogênicos" na pandemia: a produção cultural da ignorância, o ceticismo com o conhecimento especializado e a institucionalização política do negacionismo. Dos três países estudados, o Brasil é o que "chegou mais próximo" deste terceiro nível, diz.

Segundo ele, há no País um caso de "dissociação entre a racionalidade da evidência científica e o pragmatismo do dia a dia", em que, diante das incertezas da pandemia e da falta de respostas do governo, parte da população adotou um jeito próprio de enfrentar a situação.

"Não se trata mais de apenas negar. Mas algo entre entender e enfrentar, mas sem mudar os comportamentos no dia a dia. Porque, na prática, as pessoas estão tão focadas no pragmatismo cotidiano, de precisar trabalhar, comer, que a escolha ficou difícil. Entre arriscar e sofrer os custos, optou-se pelo risco de se contaminar", sugere.

Leonel defende que a mensagem passada a maior parte do tempo por alguns governos, como o de São Paulo, pode ter ajudado nessa compreensão. "Dizia-se o tempo todo: 'fique em casa, mas se tiver que sair, use máscara o tempo todo'. Esse 'mas', do ponto de vista subjetivo, é uma permissão, que incorpora as pessoas que precisam tocar a vida. 'Se o Estado não está lá, eu ponho minha máscara de pano, o álcool em gel, me enfio no busão e vou trabalhar'", comenta. "A pessoa até acredita no vírus, mas se arrisca."

Já sobre as pessoas que vão para a balada, o pesquisador acredita que elas não têm uma compreensão do Brasil como uma coisa unitária. "As pessoas acham que os problemas acontecem em Manaus, no sul do País, mas não 'aqui', seja lá onde elas estiverem. É uma dinâmica social que foi favorecida pela falta de o governo federal forjar uma estratégia nacional. Isso intensificou a fragmentação regional e individualização da responsabilidade de pegar o vírus."

Estadão
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