Fragmentos de um amor pandêmico
Quando deixei de sentir o cheiro dela no meu travesseiro, achei que o luto pela separação havia terminado. Errei. Era covid.
Quando deixei de sentir o cheiro dela no meu travesseiro, achei que o luto pela separação havia terminado.
Errei.
Era covid.
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Essa memória sem cheiro é mais cruel. Tenho uma manhã de cão farejador. Procuro vestígios do seu perfume pelos cantos da casa. Cheiro o vão do sofá, a estante de livros, a gaveta de meias, os talheres que sonham no escorredor da pia, a tampa do vaso sanitário... Nada.
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Uma quarentena de você. Não mando mensagens, não entro no seu Instagram, não ouço a nossa música, não peço o seu japonês preferido, não coloco meus pés na rua para seguir suas pistas.
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Usei minha N95 para me proteger de você. Me proteger dos seus poderes, da sua capacidade de ler nos meus lábios as mentiras mais tristes.
Para o meu azar, você também é telepata.
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Agora, você tem a desculpa perfeita para não me ver.
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A gente ainda estava junto quando a pandemia começou. Tínhamos planos para quando "essa loucura acabasse". Primeiro a gente achou que acabaria em 15 dias, depois em um mês, três meses no máximo, seis meses e pronto... Não deixa de ser irônico perceber que "essa loucura" acabou com a gente primeiro.
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Eu sei que perdi a cabeça com a atendente da companhia aérea. Falei coisas horríveis pelo telefone. Sentada ao meu lado, você ouviu tudo. E acho que foi neste dia que você deixou de me amar.
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Consegui a devolução do dinheiro da passagem. Me manda seu Pix que eu faço o depósito.
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Ainda sei o número do seu CPF de cabeça.
Acho que gosto de você.
(Sei poucas coisas de cabeça).
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Acordo no meio da noite pensando em você, em você, na covid, em você, na covid, na covid, em você, na covid.
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Queria te perguntar uma coisa: você está saindo com alguém?
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Conheceu alguém que vale o risco?
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Tantas perdas, tanta gente morrendo, que eu tenho até vergonha de sofrer por você.
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Sou um burguês apequenado.
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Você está bem? E seus pais? Sua avó já tomou vacina?
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Hoje vi um homem surtar no metrô. No horário de pico, ele deu um grito e tirou a máscara no meio da plataforma. Não entendi o que ele dizia, mas achei triste. Não sei porque estou contando isso pra você.
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E se a gente marcasse um café? E se a gente ficasse se olhando de uma distancia segura? E se a gente ficasse se olhando até descobrir (e entender) que nunca tivemos nenhuma chance?
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E se eu pudesse te esquecer hoje?
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É negacionismo que chama, não é?