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Coronavírus

Bolsonaro coloca militares na Anvisa para controlar vacinas

Especialistas temem que a articulação politize o órgão e dê ao presidente controle sobre as aprovações de imunizantes contra covid-19

7 dez 2020 - 10h00
(atualizado às 10h31)
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O presidente Jair Bolsonaro está agindo para garantir o controle da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em articulação que alguns especialistas em saúde temem que irá politizar o órgão regulador e dar ao presidente, um dos mais proeminentes céticos em relação ao coronavírus no mundo, as rédeas sobre aprovações de vacinas contra a Covid-19.

Jair Bolsonaro participa da Solenidade de Declaração dos novos Aspirantes da Aeronáutica
Jair Bolsonaro participa da Solenidade de Declaração dos novos Aspirantes da Aeronáutica
Foto: Marcos Carvalho / Futura Press

Em 12 de novembro, Bolsonaro indicou o tenente-coronel reformado do Exército Jorge Luiz Kormann para assumir um dos cinco cargos de diretoria da Anvisa. Sem experiência em medicina ou desenvolvimento de vacinas, Kormann deve liderar a unidade encarregada em dar sinal verde aos imunizantes. Caso o nome seja confirmado pelo Senado, como se espera, aliados de Bolsonaro ocuparão três das cinco diretorias da Anvisa, o que lhes dará maioria em todas as decisões da agência.

"A Anvisa hoje esta sendo aparelhada por diretores aliados com a postura negacionista e irresponsável do ponto de vista sanitário do Bolsonaro", disse o deputado Alexandre Padilha (PT-SP), ex-ministro da Saúde.

A Reuters entrevistou mais de uma dezena de autoridades antigas e atuais, governadores e parlamentares sobre os planos de Bolsonaro para a Anvisa, um órgão regulador responsável pela aprovação de medicamentos, dispositivos e tratamentos.

Muitos disseram ter preocupação de que a crescente influência do presidente na Anvisa esteja politizando a agência, que vai ter a função de aprovar diferentes vacinas em teste no Brasil. Embora não tenham citado evidências específicas, alguns têm receio de que Bolsonaro, de olho na reeleição em 2022, possa usar as aprovações da Anvisa para acelerar as vacinas a aliados e retardar a chegada aos rivais.

Outros temem que a resistência de Bolsonaro às vacinas contra o coronavírus se infiltrará na Anvisa, minando a credibilidade e alimentando o crescente fervor antivacinas no país.

A Anvisa disse que é prerrogativa de Bolsonaro indicar diretores, cabendo ao Senado confirmá-los. "A Anvisa não tem ... participação nesse processo", afirmou em nota, recusando-se a fornecer mais comentários.

O Palácio do Planalto não respondeu aos pedidos de comentários. O Ministério da Saúde, onde Kormann trabalha atualmente como secretário-executivo adjunto, também não quis comentar. Kormann não respondeu às solicitações enviadas ao seu email.

Bolsonaro tem repetidamente minimizado a gravidade da Covid-19 e elogiado o medicamento contra a malária hidroxicloroquina, que não tem comprovação científica contra a doença e que ele diz ter tomado quando contraiu o coronavírus em julho. Na semana passada, ele disse que não tomaria qualquer vacina contra o coronavírus que se tornasse disponível. Bolsonaro afirmou que a recusa é seu "direito" e que não espera que o Congresso determine a obrigatoriedade das imunizações.

O apoio público à vacinação contra Covid-19 está caindo em todo o Brasil, de acordo com pesquisa Datafolha de novembro com moradores de quatro grandes cidades. Em São Paulo, por exemplo, 72% dos entrevistados disseram que tomariam a vacina, queda de 7 pontos em relação ao mês anterior, enquanto o apoio à imunização obrigatória caiu 14 pontos, para 58%.

Silvia Waiãpi, 2ª tenente do Exército e secretária especial de saúde indígena do Ministério da Saúde, disse esperar que a formação militar de Kormann fortaleça a Anvisa. "O presidente Bolsonaro está colocando o país em ordem. A Anvisa é um órgão importante no Brasil e observa-se o extremo zelo e cuidado pra gerir as coisas ali", declarou Waiãpi à Reuters.

No entanto, a Univisa, associação dos trabalhadores da Anvisa, e o Sinagências, sindicato nacional dos servidores das agências de regulação, se opuseram publicamente à indicação de Kormann por falta de experiência relevante. Os presidentes brasileiros sempre nomearam diretores da Anvisa. Mas a agência tradicionalmente tem agido de forma independente, e seus diretores escolhidos pela experiência, segundo funcionários atuais e antigos entrevistados pela Reuters.

SOLDADO LEAL

Além da inexperiência de Kormann, as fontes entrevistadas pela Reuters disseram que também se preocupam com sua proximidade com Bolsonaro. A Reuters analisou conversas internas no WhatsApp do Ministério da Saúde em junho, quando a pasta esteve envolvida em um escândalo depois que parou abruptamente de publicar dados abrangentes de casos e mortes de Covid-19 em seu site. Kormann desempenhou papel central no esforço do ministério para ocultar essas estatísticas, mostraram as conversas.

Quando a pandemia atingiu o país, Bolsonaro afastou autoridades especialistas do Ministério da Saúde que defendiam medidas rígidas para controlar o vírus. Ele as substituiu por militares sem experiência em saúde pública, desencadeando eventos que deixaram o Brasil com o segundo maior número de mortes por Covid-19 no mundo: quase 177.000 mortes e mais de 6,6 milhões de infecções confirmadas.

Agora, conforme o foco muda para a aprovação da vacina, Bolsonaro parece estar seguindo a mesma cartilha na Anvisa, de acordo com várias fontes. A nomeação de Kormann pode permitir que Bolsonaro dite a política de vacinas.

Bolsonaro tem, por exemplo, criticado uma vacina chinesa, desenvolvida pela Sinovac Biotech Ltd., que atualmente está sendo testada em estágio avançado no Estado de São Paulo. Fã declarado do presidente dos EUA, Donald Trump, ele imitou seu homólogo norte-americano ao condenar a China como a fonte da pandemia.

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), é amplamente visto como um potencial rival eleitoral de Bolsonaro em 2022. Seu Estado comprou milhões de doses da vacina da Sinovac para inocular moradores de São Paulo. Mas a Anvisa precisa primeiro atestar a segurança da vacina antes que as imunizações possam começar.

Bolsonaro muitas vezes buscou minar a credibilidade da vacina da Sinovac. Em outubro, ele reverteu rapidamente um anúncio de seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, um general do Exército na ativa, que havia dito em uma reunião com governadores que o governo federal planejava comprar a vacina da Sinovac para incluir no Programa Nacional de Imunização.

Bolsonaro disse que Pazuello foi mal interpretado: "Tenha certeza, não compraremos vacina chinesa", afirmou o presidente na mídia social em 21 de outubro, respondendo a um apoiador que havia feito um apelo para que ele não comprasse a vacina.

Na terça-feira, o Ministério da Saúde delineou seu plano nacional preliminar de imunização. A vacina da Sinovac não estava listada entre as potenciais vacinas para compra.

O governo Bolsonaro já tem um acordo com a AstraZeneca para garantir o fornecimento de sua vacina e está procurando outras empresas, incluindo a Pfizer Inc. e a Janssen, uma unidade da Johnson & Johnson.

A Sinovac não respondeu aos pedidos de comentários. Pazuello não respondeu a perguntas sobre se ele foi mal interpretado, nem por que a Sinovac foi deixada de fora da lista.

No mês passado, o presidente comemorou como uma vitória pessoal quando a Anvisa suspendeu temporariamente os testes com a vacina da Sinovac devido ao suicídio de um voluntário. Determinou-se que a morte não tinha relação com a vacina e o teste foi retomado rapidamente.

Doria não respondeu às solicitações de comentário. Ele disse recentemente ao site de notícias Metrópoles que Bolsonaro tem influência no órgão regulador de saúde.

"Hoje há uma suspeita de que a Anvisa pode sofrer ingerências políticas do Palácio do Planalto e não ser uma agência independente como deveria ser, como deve ser", afirmou Doria em entrevista publicada no dia 26 de novembro.

DADOS RETIRADOS

Bolsonaro já tem prevalência na Anvisa, que é comandada por um de seus aliados, o contra-almirante da Marinha Antonio Barra Torres. Formado em medicina e cirurgião, Barra Torres foi confirmado no posto no dia 20 de outubro. Torres foi notícia em março quando apareceu ao lado de Bolsonaro em um ato político ao ar livre em Brasília. Nenhum dos dois usava máscara.

Seis fontes disseram à Reuters que houve muitas reclamações internas na Anvisa sobre uma falha identificada da agência reguladora, sob Barra Torres, em contestar com mais força a defesa do presidente da hidroxicloroquina como uma "cura" para a Covid-19.

A Anvisa não respondeu a um pedido de comentário.

Outra aliada de Bolsonaro, Cristiane Jourdan, também foi confirmada como diretora em 20 de outubro. Médica e ex-diretora de hospital, ela apoiou o uso da hidroxicloroquina para tratar a Covid-19, afirmaram duas fontes.

A Anvisa não disponibilizou Barra Torres ou Jourdan para entrevistas. Eles não responderam às solicitações de comentários enviadas para suas contas de email.

Em entrevista à Reuters no final de outubro, Barra Torres disse que a Anvisa será sempre guiada pela ciência.

"A blindagem da Anvisa é a alta capacitação dos seus servidores e a profunda dedicação desses mesmos servidores em encontrar as soluções adequadas para o problema. E é claro, nós, os seus cinco diretores, nós não nos envolvemos com nenhuma questão política", garantiu.

Kormann chegou ao Ministério da Saúde em maio, integrante de uma leva de militares indicados pelo governo Bolsonaro. Ao assumir o cargo na pasta, ele rapidamente se envolveu em polêmica.

No início de junho, quando a taxa de casos de coronavírus no Brasil começou a disparar, o Ministério da Saúde inesperadamente tirou do seu site dados públicos detalhados sobre a Covid-19 que documentavam a epidemia ao longo do tempo por Estados e municípios. O movimento gerou indignação pública. Em poucos dias, o Supremo Tribunal Federal ordenou ao ministério que restabelecesse esses dados por uma questão de segurança pública.

Até agora, pouco se sabia sobre o que levou à retirada dessas informações.

A Reuters viu conversas internas no WhatsApp do Ministério da Saúde entre Kormann e outras autoridades. As mensagens mostram que Kormann, agindo por ordem de um superior, os orientava a retirar os dados.

As conversas mostram que Kormann e seus chefes militares ficaram alarmados com o número cumulativo de casos e mortes que pintava um quadro cada vez mais sombrio de uma pandemia que Bolsonaro tinha classificado como uma "gripezinha". Eles queriam que esses dados cumulativos fossem removidos e apenas as contagens diárias menores mostradas.

"Retirar do ar números CUMULATIVOS!!!!", escreveu Kormann às 17h23 em 5 de junho, de acordo com uma imagem da conversa vista pela Reuters. Esse conteúdo não havia sido divulgado anteriormente. Kormann deixou claro nas conversas que estava agindo por ordem de Pazuello.

O Ministério da Saúde não respondeu aos pedidos de comentários nem disponibilizou Kormann ou Pazuello para declarações. Pazuello não respondeu ao pedido de comentário enviado ao seu email.

Poucas horas depois da diretriz de Kormann em 5 de junho, quase todas as estatísticas da Covid-19 foram retiradas do site.

No dia seguinte, Bolsonaro defendeu a retirada dos dados, dizendo no Twitter que eles não refletiam o momento em que o país estava.

Em 8 de junho, apenas três dias depois de Kormann ter dado a ordem de remover os dados, ele foi promovido a secretário-executivo adjunto da pasta.

"É um militar que é muito próximo do Bolsonaro. A interferência militar tem uma coisa de hieraquia. Mesmo sendo a Anvisa autônoma, o Bolsonaro é o comandante em chefe", disse um ex-chefe do órgão regulador, referindo-se à indicação de Kormann.

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