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Coronavírus

A nova divisão econômica

Falta de vacina para países pobres alimenta temores de crescimento desigual e pânico nos mercados globais

20 jun 2021 - 05h10
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Na década de 1970, o destino da economia mundial, com toda a sua enorme complexidade, parecia se concentrar em um insumo: o petróleo. Exportado por um grupo pequeno de países, esse produto vital ficou refém de forças políticas ferozes. Do mesmo modo, hoje as perspectivas econômicas mundiais dependem de outro insumo, as vacinas, que também são produzidas por um grupo limitado de companhias, têm um caráter político delicado e são distribuídas de maneira desnivelada. Uma campanha de vacinação abrangente vem contribuindo para um boom nos Estados Unidos, levando a taxa básica de inflação ao seu nível mais alto desde 1992. Mas os atrasos na compra, na fabricação e na distribuição das vacinas têm deixado grande parte do mundo vulnerável a novas epidemias e a retrocessos econômicos.

Em 16 de junho, o Federal Reserve, banco central americano, elevou suas previsões de crescimento, inflação e juros, observando o avanço da vacinação no país. A expectativa agora é de dois novos aumentos em 2023. Essa mudança de tom foi suficiente para aumentar os rendimentos dos títulos nos Estados Unidos e em economias onde a vacinação está atrasada.

A economia global deve crescer rapidamente este ano: 5,6% de acordo com o Banco Mundial, que atualizou suas previsões este mês. Mas esta é "uma história de duas recuperações", disse Ayhan Kose, economista do banco. Os países ricos, muitos deles vacinando as pessoas de modo relativamente rápido, desfrutam de uma primavera de esperança, como dizia Charles Dickens. Mas, nos lugares em que a vacinação é lenta, especialmente nos países pobres, algumas economias caminham diretamente para o lado contrário.

Desigualdade

O desnível entre vacinados e não vacinados é visível na simples comparação das taxas de vacinação e as previsões de crescimento. Entre as grandes economias destacadas pelo Banco Mundial, as dez com os maiores números de pessoas vacinadas devem crescer 5,5% este ano em média. No caso das dez com o menor número de vacinados, a previsão é de um crescimento de apenas 2,5%.

As revisões dos prognósticos também mostram essa divisão. Graças ao ritmo de vacinação nos Estados Unidos (como também a escala do estímulo à economia), o crescimento projetado para 2021 foi revisado para cima, de 3,5% previstos pelo Banco Mundial em janeiro para 6,8%. As economias emergentes onde a vacinação tem sido mais rápida também observarão um crescimento maior.

Do outro lado da linha divisória, o cenário é mais conturbado. Nas 29 economias mais pobres do mundo (incluindo 23 países da África Subsaariana), somente 0,3% da população recebeu uma dose da vacina. As perspectivas de crescimento desse grupo de países deterioraram. Seu PIB combinado deve crescer 2,9% este ano (e não 3,4%, como eram as previsões há seis meses). Esse será seu segundo pior desempenho nas duas últimas décadas. O pior foi no ano passado.

A vacinação contribui para o crescimento de duas maneiras. Permite aos países eliminarem os lockdowns e outras restrições à interação social que vêm prejudicando a economia. E, em locais como a Nova Zelândia, que já suspendeu essas medidas, ela reduz o risco de um futuro surto, tornando o crescimento mais resiliente. O Goldman Sachs criou um "índice de lockdown eficaz" que combina um cálculo de medidas políticas com dados sobre mobilidade extraídos de telefones celulares.

E mostra que toda agitação social retornou a muitos países com um grande número de pessoas já vacinadas. À medida que o ritmo de inoculação acelerar, outros se juntarão a eles. Na verdade, os países com mais probabilidade de se superarem nos próximos meses, diz o Banco, são aqueles que simultaneamente vêm avançando rapidamente no caminho da imunidade, mas ainda operam sob restrições sociais. Eles ainda terão de colher os benefícios da flexibilização das restrições, mas isso ocorrerá logo.

Nesses países, os dados econômicos atuais continuam fragilizados por causa das restrições sociais que serão flexibilizadas com o avanço da vacinação. Em outros países, porém, caso de Taiwan, novos surtos de covid-19 ainda têm de aparecer plenamente nos indicadores econômicos que ainda continuam robustos.

O modelo "do momento presente" do JPMorgan Chase, que usa dados mensais para prever em que ponto está a economia no momento, mostra Taiwan com um crescimento anual de 9% no segundo trimestre. Mas o banco entende que a economia de Taiwan na verdade encolheu nesse período. Na zona do euro, ao contrário, a vacinação impulsionou um crescimento neste trimestre para mais de 7% ao ano. Mas, segundo o modelo do JPMorgan Chase, a previsão é de um crescimento inferior a 3%.

Dada a importância desse desnivelamento global no campo das vacinas, vale a pena perguntar o quão rápido ele diminuirá.

Em agosto, no Japão, na Coreia do Sul, no Brasil, na Turquia e no México, pelo menos uma dose da vacina já terá sido aplicada em metade da sua população, diz o Goldman. África do Sul e Índia só atingirão essa meta em dezembro. Nos dois países, porém, muitas pessoas já se recuperaram do vírus, o que lhes confere algum nível de imunidade natural. Para Michael Spencer, do Deutsche Bank, a Índia, por exemplo, chegará a 70% de imunizados em menos de nove meses, contando todos os que já foram infectados ou tomaram a primeira dose de uma vacina.

Inflação

Uma recuperação desnivelada é melhor do que nada. Mas a força do crescimento de alguns países pode criar problemas para outras partes do mundo. O boom dos Estados Unidos elevou os preços ao consumidor em 5% em maio, em comparação com o ano anterior, e pode pressionar os preços em outros lugares, obrigando os bancos centrais a adotarem medidas em resposta.

O Brasil, por exemplo, aumentou os juros drasticamente neste ano. Em 11 de junho, o banco central da Rússia também endureceu suas medidas pela terceira vez desde março.

Mesmo uma inflação temporária pode perturbar os mercados financeiros, levando os investidores a duvidarem da promessa do Federal Reserve (o banco central americano) de dinheiro fácil, o que aumentará o risco de os mercados emergentes resgatarem seus empréstimos. "Não estamos preocupados com a inflação", disse Kose, cuja equipe revisou um aumento previsto da inflação global de 2,5% no ano passado para 3,9% em 2021.

A inflação global este ano continuará bem distante dos dois dígitos, como ocorreu na década de 1970. Mas, do mesmo modo que a crise do petróleo na época obrigou os responsáveis econômicos dos países a elevarem os juros para fazer face à fragilidade econômica, a escassez de vacinas pode criar desconfortos similares a eles. O preço da vacinação desnivelada pode ser a austeridade e um aperto monetário em algumas partes do mundo não protegidas. Países vacinando tarde demais terão de elevar os juros cedo demais. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Estadão
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