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Como um detetive negro se infiltrou na Ku Klux Klan no Colorado

Ron Stallworth, um policial negro do Colorado, começou uma investigação secreta sobre a organização racista que prega a supremacia branca em 1978; ele chegou a ficar amigo do líder da Ku Klux Klan, David Duke

16 ago 2018 - 05h10
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Ron Stallworth, o primeiro detetive da delegacia de polícia de Colorado Springs lia um jornal local em outubro de 1978 quando viu um anúncio publicado pela organização racista Ku Klux Klan: "Para mais informações, fazer contato pela Caixa Postal 4771, Segurança, Colorado", dizia o anúncio. Ele respondeu ao anúncio com uma nota bem curta.

"Disse a eles que era um branco que odiava hispânicos, amarelos, judeus, japoneses e qualquer indivíduo que não fosse branco ariano como eu", lembrou Stallworth durante uma entrevista por telefone. "Disse que gostaria de fazer alguma coisa para parar com os abusos contra a raça branca".

Mas ele cometeu um erro. "Assinei a nota com meu nome verdadeiro e não com minha identidade falsa e enviei pelo correio, achando que receberia um panfleto, um folheto de propaganda ou algo similar". Duas semanas depois, o telefone tocou na sua sala. Era o organizador da divisão da Klan em Colorado Springs. Ele perguntou a Stallworth porque gostaria de entrar para a Organização", como eles chamam.

Contra racismo da Ku Klux Klan

Stallworth, que nasceu em Chicago e cresceu em El Paso, lembrou de todo o tempo da sua vida em que era chamado de negro. Pensou na resposta mais vil, mais cheia de ódio que daria para impressionar um membro da Ku Klux Klan. Então ele despejou a mesma série de pejorativos asquerosos usados para negros, judeus, asiáticos e hispânicos e "todos aqueles que não têm puro sangue ariano correndo nas veias", disse.

"Disse a ele que minha irmã ficou noiva de um negro e toda vez que ele colocava suas mãos imundas no corpo branco maculado dela isso me dava calafrios e eu queria fazer alguma coisa para impedir essas coisas de acontecerem". O organizador da Klan ficou encantado. "Você é o tipo de pessoa que estamos procurando. Quando podemos nos encontrar?"

"Tive de elaborar um plano rapidamente. Disse a ele que não poderia encontrá-lo naquele momento. Acertamos para a semana seguinte. Comecei a adotar algumas medidas, e consegui um oficial branco para ir no meu lugar para esse encontro direto".

E assim ele começou uma investigação secreta que durou sete meses, conseguindo se infiltrar na organização com a ajuda do seu colega branco que se passava por ele. Conseguiu enganar David Duke, o líder do KKK, que Stallwortth contatava regularmente para obter informação sobre as atividades do grupo. Duke não tinha a mínima idéia de que o homem que estava falando do outro lado da linha era um afro-americano.

Um filme para a Era Donald Trump

A história da investigação de Stallworth é mostrada no filme BlacKKKlansman, baseado no livro escrito por ele, "Black Klansman: Race, Hate and the Undercover Investigation of a Lifetime". O filme terá lançamento nos Estados Unidos na sexta-feira, 17, marcando o primeiro aniversário da violenta manifestação Unite the Right,organizada por grupos de extrema-direita em Charlottesville. Uma mulher, que protestava contra a manifestação, Heather D. Heyer, 32 anos, foi morta quando um supremacista branco investiu seu carro contra a multidão.

O filme, dirigido por Spike Lee e produzido por Jordan Peele, é estrelado por Adam Driver no papel de Ron Stallworth branco e John David Washington, filho de Denzel Washington, interpretando o real Ron Stallworth. A película recebeu o Grand Prix do Festival de Cinema de Cannes. "Assisti ao filme duas vezes", disse Stallworth, hoje com 65 anos de idade e vivendo em El Paso. "É um filme poderoso. Claro que Spike criou uma história em torno da minha. Ele fez um bom trabalho, encaixando bem a história e fazendo uma conexão histórica partindo da Confederação até Charlottesville, David Duke e Donald Trump".

Segundo ele o filme é oportuno e também simbólico. "As pessoas têm de entender que esta é uma ameaça à própria substância da sociedade americana". Essa ameaça era muito clara no Colorado em 1978, quando Stallworth começou sua investigação, que impediu três incêndios de cruzes, revelou que havia membros da organização no Exército e no Comando de Defesa Aeroespacial Norte Americano, e frustrou um plano dos membros da Ku Klux Klan de bombardear dois bares gays em Denver.

Durante a investigação ele examinou arquivos secretos do FBI sobre a história da organização no Colorado, criada em torno de 1921. Duas semanas depois, o grupo contava com cerca de 35.000 a 40.000 membros. Os arquivos continham informações sobre ataques à bomba cometidos pelo grupo, incluindo a casa de um carteiro negro que havia se mudado para um bairro de brancos. Em 1925,eles incendiaram uma igreja episcopal metodista da comunidade africana em Denver.

A Ku Klux Klan dominava o Senado e a Câmara do Estado do Colorado e entre seus membros estava o prefeito de Denver, Benjamin Stapleton. "Ele não só era membro da organização em 1923 quando foi eleito prefeito pela primeira vez, mas no cargo cedeu à pressão do grupo e nomeou um indicado da Klan para delegado de polícia, "segundo uma notícia no Denver Post. "Quando Stapleton sobreviveu a um referendo para destituí-lo do cargo, a Ku Klux Klan queimou uma cruz no topo da Table Mountain para comemorar".

Um movimento teve início para remover o nome de Stapleton dos edifícios públicos de acordo com o jornal Colorado Independent. O primeiro aeroporto internacional da cidade também tinha o seu nome antes de fechar em 1995 e Stallworth se pergunta quantas pessoas que partiram e chegaram de avião desse aeroporto sabiam "que estavam homenageando um líder passado da Ku Klux Klan".

O governador do Colorado, Clarence J. Morley era membro da organização de acordo com a Denver Public Library. Dois senadores, Rice Means e Lawrence Phipps, tinham ligações estreitas com a Klan, como também o vice-governador do Estado, o presidente do Tribunal de Contas e o procurador geral. Wiliam J. Candlish, Grande Dragão da organização, era chefe da delegacia de polícia de Denver. Membros da Klan faziam parte da Direção da Universidade do Colorado e da Suprema Corte do Estado, ele descobriu.

Essas informações aumentaram sua determinação de acabar com "qualquer terrorismo doméstico" perpetrado pela organização no Colorado. Um dia, em meio à investigação ele deparou com um número de telefone do The Voice of the Klan (A Voz do Klan). Ele ligou. Mas não esperava o que sucedeu em seguida.

O líder racista da Ku Klux Klan

"E foi o próprio David que atendeu", disse Stallworth, chamando Duke pelo seu nome. "Ele riu e disse 'eu sou a Voz da Klan". Ele se identificou como o grande feiticeiro, o diretor da organização. "Disse-lhe que era membro de uma divisão da Ku Klux Klan em Colorado Springs e estava honrado em falar com ele".

Em telefonemas posteriores, ele cobria Duke de cumprimentos. "Ele era muito parecido com Donald Trump, no sentido de que adorava ser adulado. Gostava de elogios". Segundo Stallworth, Duke era simpático, "quando não falava de raça. Mas inevitavelmente o tema surgia. E o médico se transformava no monstro e ele dizia tudo o que há de mais infame sobre grupos raciais e pessoas de cor, etnias e pessoas, segundo afirmava, que não eram puros brancos arianos.

Ele nunca percebeu que estava conversando com um detetive negro. "Era difícil me manter sério e não explodir em risos", disse ele. Durante uma conversa, lembra Stallworth, "eu perguntei se ele não ficava preocupado de que algum negro astuto ligasse fingindo ser branco para ter alguma informação sobre o grupo". Ele respondeu que não. "Não me preocupo. Sei quando estou falando com um negro ao telefone e consigo dizer quando não são brancos puros".

Stallworth perguntou como ele conseguia. Duke explicou que conseguia decifrar a cor pelo telefone, "pela maneira como eles pronunciam certas palavras e frases". "Como você", disse ele. "Posso dizer que você é um branco ariano puro porque sua pronúncia em Inglês é correta. Um negro não consegue falar assim".

Pelo Twitter, Duke rejeitou os relatos de Stallworth. "O filme todo é uma grande mentira. Se fosse autêntico quando descreve os membros do KKK como violentos, por que eles não são presos e julgados? Por que? Eles não são violentos nem agem ilegalmente. Somente tentam despertar os brancos para a próxima limpeza étnica nos EUA".

Stallworth disse que as pessoas perguntam com freqüência porque nenhuma prisão é feita. "Isto sempre foi um fator de discórdia, nos círculos policiais e entre pessoas como David Duke que tentam minimizar o problema. Ninguém foi preso por um delito".

Stallworth diz ter realizado uma "investigação secreta" e deste ponto de vista ela foi um sucesso. Nenhuma cruz foi queimada durante os sete meses e meio que durou sua investigação. Não ocorreu porque ele teria sido convidado para participar. Quando tinha uma informação, a delegacia de polícia enviava um contingente para o local.

"Eles falaram em lançar bombas contra dois bares gays. Mas não o fizeram. Nós impedimos dois membros do grupo que trabalhavam no Exército e lidavam com explosivos de realizarem o ataque. Falaram em roubar armas automáticas da base do Exército em Fort Carson para estocá-las em preparação para uma guerra racial. Obtivemos informações valiosas".

Quando Duke viajou para Colorado Springs para uma reunião da organização, Stallworth recebeu uma atribuição que não conseguiu acreditar. Seu supervisor o indicou para proteger Duke. Durante a visita Duke jamais percebeu que o homem com quem havia conversado durante meses era negro.

No Bonanza Steakhouse, em Colorado Springs, Stallworth perguntou a ele se podiam fazer uma foto juntos. Duke concordou, até que Stallworth colocou a mão nos ombros dele e pediu para o "Ron Stallworth branco", tirar a foto. "Duke correu para tirar a máquina da minha mão. Eu lhe disse: 'se você me tocar eu o prenderei por ataque a uma autoridade policial. O que equivale a cinco anos de prisão. Ele ficou parado, perplexo".

Em março de 1979, depois que o organizador local da Klan de Colorado Springs insistiu para Ron Stallworth assumir a liderança, o delegado de polícia local ordenou que ele encerrasse a investigação, cessar todos os telefonemas e contatos. "Ele deixou claro que desejava que "Ron Stallworth - Klangsman' desaparecesse completamente.

A foto polaróide de Stallworth com Duke desapareceu, disse ele. "Nunca vi a foto nesses 40 anos. Se soubesse que um dia escreveria um livro, teria cuidado bem dela". Depois de encerrada a operação, ele passou um tempo trabalhando como investigador na divisão de narcóticos e integrou a Força de Combate ao Crime Organizado no departamento de Justiça do Colorado.

Também trabalhou em Wyoming e depois no gabinete da polícia de narcóticos do Departamento de Segurança Pública em Utah. Stallworth se aposentou em 2005. / Tradução de Terezinha Martino

Estadão
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