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Com governo Bolsonaro, emissão de passaportes diplomáticos volta a crescer

Até agosto, Itamaraty emitiu 1.686 documentos, maior número desde 2016

17 set 2019 - 17h11
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BRASÍLIA - A cada nova legislatura no Congresso, a velha prática de emissão de passaportes diplomáticos se repete. De janeiro a agosto deste ano, o Itamaraty emitiu 1.686 documentos que dão direito a entrada por guichês especiais nos aeroportos internacionais. O número é maior que os dos três anos anteriores. A maioria dos passaportes foi entregue a parlamentares e seus parentes - são 784 emitidos apenas para a Câmara dos Deputados -, mas há também líderes evangélicos contemplados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro e políticos que estão fora do cargo.

Para o Itamaraty, o número de concessões de passaportes diplomáticos neste ano é justificado, "em grande parte, pela mudança de governo" e posse de novos congressistas. A legislação permite a pessoas do alto escalão dos Três Poderes e da diplomacia receber o passaporte especial. Há uma brecha, no entanto, para que o privilégio se estenda em casos de "interesse do País", o que beneficiou os evangélicos. A brecha é usada por lideranças evangélicas desde o tempo do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Por outro ponto cinzento da regra, o Itamaraty e órgãos do governo fazem "jogo de empurra" quando uma autoridade que possui o passaporte deixa o seu cargo. O Itamaraty entende que congressistas licenciados não são obrigados a devolver o documento. "Ao licenciar-se para exercer cargo no Executivo, o parlamentar não perde seu mandato e pode reassumi-lo em caso de exoneração da função executiva", argumentou a pasta.

O Estado contou seis deputados com passaportes diplomáticos que se afastaram da Câmara para assumir secretarias estaduais, cargos fora da lista de beneficiados com documento especial. Procurados, apenas Ney Leprevost (PSD-PR) respondeu à reportagem. Ele disse que segue com o documento. "Não recebi nenhum pedido de devolução", justificou.

O Planalto não informa se ministros e secretários exonerados por Bolsonaro devolveram o documento. Procurados, Gustavo Bebianno e o general Santos Cruz disseram ao Estado que entregaram o passaporte. "Fora disso é ilegalidade", disse o militar.

O passaporte diplomático é entregue de graça. O documento comum custa R$ 257,25. Em tese, recebem o benefício pessoas que viajam em funções oficiais de representação diplomática. Com o passaporte especial em mãos, é possível entrar em filas menores nos aeroportos internacionais. O visto ainda é dispensado em alguns países, mas o papel não dá imunidade jurídica a quem está viajando.

Agrado a evangélicos na gestão Bolsonaro

Os casos de maior repercussão na gestão Bolsonaro envolvendo passaportes mexem com assunto caro ao governo: a proximidade com lideranças evangélicas, que sustentam boa parte da popularidade do presidente.

O pastor Valdemiro Santiago de Oliveira, da Igreja Mundial do Poder de Deus, participou da transmissão semanal de Bolsonaro nas redes sociais em 12 de julho, ambos com chapéus de cowboy, no mesmo dia em que o líder religioso entregou ofício ao Itamaraty pedindo o passaporte diplomático. Quase um mês depois o governo autorizou Valdemiro e sua mulher, Franciléia de Castro Gomes de Oliveira, a receberem o documento.

A Justiça Federal em São Paulo, no entanto, determinou no mês passado o recolhimento do passaporte do pastor, "por não haver comprovação do interesse público". Questionado, o Itamaraty informou não ter recebido "nenhuma comunicação oficial solicitando o cancelamento dos passaportes, que, portanto, continuam válidos".

A entrega do passaporte diplomático foi mais célere para o bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus. O pedido foi feito em ofício assinado em 5 de abril. A portaria concedendo o documento a Macedo e sua mulher, Ester Bezerra, é do dia 12 do mesmo mês.

Edir Macedo argumentou ao governo que merecia o privilégio, pois a sua igreja está presente em mais de 120 países e realiza "missões" que promovem "valores constitucionais do Estado Democrático brasileiro", como "direitos humanos, a autodeterminação dos povos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade".

O bispo esteve ao lado do presidente no desfile de Sete de Setembro, em Brasília, e já pediu em culto que Deus "removesse" aqueles que se opõem ao governo.

O líder da Igreja Internacional da Graça de Deus, R. R. Soares, e sua mulher, Maria Ribeiro Soares, também ganharam o documento em junho deste ano. Soares esteve três vezes no Planalto com Bolsonaro.

Nos casos de Edir Macedo e R. R. Soares, a Justiça também pediu a suspensão do documento sob o mesmo argumento de que não havia "interesse ao País", como manda a legislação. Procurado, o Planalto disse que não participa do assunto. "A concessão de passaportes oficiais e diplomáticos é de responsabilidade do Itamaraty, sem interferência do Planalto."

'Farra' dos passaportes é antiga; deputado quer mudar regra para emissão

A distribuição de passaportes diplomáticos aos montes não é nova. Já despertava críticas da oposição e questionamentos da Justiça nos governos petistas, inclusive pela liberação do documentos a lideranças religiosas. Edir Macedo ganhou o benefício em 2006, durante o governo Lula (PT). O passaporte foi renovado em 2011 e em 2014, na gestão de Dilma Rousseff (PT), mas estava vencido desde 2017. No começo deste ano havia apenas uma liderança religiosa com passaporte diplomático válido, o pastor da Assembleia de Deus Samuel Cássio Ferreira. O documento expirou em maio.

Há ainda 52 passaportes emitidos para senadores e 54 para seus dependentes em 2019. O ex-governador do Tocantins Marcelo de Carvalho Miranda tem o documento especial, pois é marido da deputada federal Dulce Miranda (PMDB). A legislação cita que o Itamaraty deve regulamentar a entrega de passaportes a parentes de autoridades, mas a norma jamais foi criada.

Dos 784 emitidos no total pela Câmara, foram 365 para deputados e 419 para cônjuges e dependentes. O presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM), responde por sete documentos do tipo: para ele, mulher e cinco filhos.

Um projeto de lei em tramitação na Câmara quer acabar com o "trem da alegria" dos passaportes. O autor é ex-ministro da Cultura deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ), que propõe que o documento de viagem emitido por "interesse do País", como o utilizado em missões oficiais, seja o passaporte oficial e não o passaporte diplomático.

O oficial ainda é emitido sem custos, mas possui menos benesses, como rol menor de países que dispensam visto. O projeto de Calero tramita na Comissão de Relações Exteriores, presidida por Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e aguarda indicação de relator.

Estadão
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