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Uma conquista evangélica está acontecendo. E a Amazônia é um prêmio muito procurado

A única saída é limitar as ações evangélicas contra os povos indígenas da Amazônia e respeitar seus direitos a autodeterminação

8 out 2020 - 10h10
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Conforme o coronavírus se espalhou pela Amazônia em março, a organização evangélica Missão Novas Tribos do Brasil começou a montar uma missão ao Vale do Javari, uma região remota perto da fronteira com o Peru onde habita a maior concentração de povos indígenas do mundo.

Com um helicóptero recém-adquirido, o grupo supostamente planejava contatar e converter a tribo Korubo que vive em isolamento voluntário no vale. A operação corria o risco de espalhar o coronavírus e outras infeções perigosas para pessoas altamente vulneráveis a doenças transmitidas por estranhos. Os missionários continuaram organizando voos para o Vale do Javari até o final de março. Em abril, um juiz brasileiro proibiu que eles e outros grupos missionários entrassem na área. (Em resposta às críticas, o grupo negou que planejava entrar em contato com tribos isoladas e disse que não trabalha com povos isolados.) Uma conquista evangélica está acontecendo em toda a América Latina, e na luta pela hegemonia religiosa a Amazônia é um prêmio muito procurado. De acordo com uma pesquisa, agora há mais evangélicos do que católicos na região. Missionários evangélicos também estão entrando na política, com a intenção de moldar políticas que facilitem o acesso às últimas tribos.

Em fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro nomeou Ricardo Lopes Dias, missionário evangélico da New Tribes Mission e agora antropólogo, encarregado da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Lopes Dias agora está posicionado para transformar os objetivos evangélicos em política. Sua nomeação provavelmente encorajou grupos missionários a procurar contatar tribos isoladas.

Não é a primeira vez que a New Tribes Mission of Brazil, uma filial da New Tribes Mission nos Estados Unidos agora conhecida como Ethnos360, corre o risco de espalhar doenças junto com a palavra de Deus.

Desde a década de 1940, a missão tem forçado o contato com comunidades indígenas, procurando convertê-las. O grupo trabalhou com o Summer Institute of Linguistics para traduzir o Novo Testamento para as línguas indígenas e para criar igrejas em povos isolados. Por muitos anos o governo brasileiro tentou proteger as tribos que optaram por viver isoladas dessas incursões. Agora o governo está apoiando as mesmas incursões.

Na década de 1980, depois que New Tribes Mission of Brazil forçou o contato com o povo Zo'é no norte da Amazônia brasileira, aproximadamente um quarto dos Zo'é foi exterminado por doenças. A FUNAI expulsou os missionários no início dos anos 90, mas alguns permaneceram, e em 2015 foram acusados de escravizar o povo Zo'é para coletar castanha-do-paráem uma plantação da missão.

Em 2014, Warren Scott Kennell, ex-missionário do grupo, foi condenado a 58 anos de prisão federal por abusar sexualmente de meninas de uma tribo indígena na Amazônia e por filmar os atos.

Até o nome da revista do grupo fundado em 1943, Brown Gold, fala muito sobre sua abordagem conquistadora.

Lopes Dias insistiu que seu passado com os missionários não influenciaria seu trabalho no governo, mas o antropólogo Edward Mantoanelli Luz, filho do presidente de New Tribes Mission of Brazil, admitiu que fez lobby para "formalmente mudar" a política estabelecida no Artigo 231 da Constituição brasileira que garantia o direito dos povos indígenas de permanecer isolados.

Os indígenas do Vale do Javari denunciaram a nomeação de Lopes Dias como ponta de lança de um genocídio. Seu coordenador, Paulo Marubo, afirma que "o projeto dele é facilitar o ingresso de missionários em terras indígenas", e teme que a FUNAI se torne uma ferramenta de proselitismo religioso na Amazônia.

As missões vão contra a política da FUNAI de respeitar o isolamento dos povos indígenas que recusam o contato, contra seu direito constitucional de não serem assimilados, e contra a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Os missionários não estão apenas espalhando a palavra do deus deles. Eles estão tentando desfazer a autodeterminação dos povos indígenas. No livro "Praying and Preying", a antropóloga brasileira Aparecida Vilaça explica que as duas coisas -rezar e predar- andam de mãos dadas: Os missionários "civilizam" ao proibir a medicina ancestral, a espiritualidade, e a cultura.

Em Bolsonaro eles encontraram um aliado forte. Autodeclarado garimpeiro de coração, Bolsonaro jura livrar-se dos povos indígenas da Amazônia e os compara aos animais. Ele está abrindo territórios protegidos à industria mineira, o que os líderes indígenas da Amazônia consideram genocida. Bolsonaro, que começou sua campanha sendo batizado no rio Jordão, contou com o voto evangélico para vencer as eleições. A saúde indígena não está em sua agenda, como ele deixou evidente ao vetar um plano de emergência para fornecer assistência médica e garantias básicas, como água e alimentos, para as comunidades indígenas durante a pandemia. As missões evangélicas podem ser complementares aos seus objetivos, mas começaram muito antes.

Os evangélicos controlam a saúde indígena há décadas, afirma Marta Azevedo, antropóloga e ex-presidente da FUNAI. Quando o governo do ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva criou a Secretaria Especial de Saúde Indígena dentro do Ministério da Saúde em 2010, as leis trabalhistas proibiram o envio de equipes médicas a territórios indígenas remotos por longos períodos.

Assim, o governo terceirizou a maioria do atendimento da saúde indígena para outro grupo de evangélicos - a Missão Evangélica Caiuá ("a serviço do índio, para a glória de Deus"), que há décadas prestava assistência médica às comunidades indígenas no estado do Mato Grosso, no sul da Amazônia. O governo forneceu os recursos e a Missão Caiuá os administrou. Hoje, a Missão Cuaiá executa contratos milionários e seu orçamento aumentou doze vezes em cinco anos, tornando-se a segunda ONG que mais recebe dinheiro do governo federal. Em outras palavras, os lobos são pagos para cuidar das ovelhas.

O sistema é um fracasso e a saúde indígena está grave como sempre. O maior perigo atual é que a covid-19 mate tantas pessoas que possa resultar em genocídio. Os Yanomami e outras tribos denunciam a corrupção, intimidação, e falta de serviços básicos de saúde. Em abril, aumentavam os casos de covid-19 e um fundo especial de R$ 4,7 bilhões que foi destinado a proteger as comunidades indígenas da covid-19 ainda não havia sido gasto, agravando a letalidade da pandemia. Ao invés disso, a FUNAI aprovou uma política autorizando a ocupação e venda de terras indígenas.

O governo brasileiro deve cessar qualquer forma de apoio aos missionários que tentam contatar os povos indígenas isolados. Logo, é crucial reverter a presença evangélica no governo e impedir os missionários de decidir sobre as questões indígenas, tanto em nível local quanto federal.

A única maneira de avançar é respeitar os direitos indígenas à autodeterminação, o que se logra simplesmente aplicando a lei. Se a conquista evangélica continuar, as perdas podem ser irreparáveis, não só para os povos indígenas, mas também para a diversidade da espécie humana.

*Manuela Lavinas Picq é professora associada visitante em ciências políticas no Amherst College.

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Estadão
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