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Sabemos como parar os incêndios na floresta amazônica

O mundo pode aprender com a prática coletiva dos povos indígenas às mudanças climáticas

8 out 2020 - 10h10
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"É muita terra para poucos índios." Assim diz a expressão defasada, ressuscitada pelo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Mas estes "poucos índios", representando 305 povos e falando 274 línguas, conseguiram o que muitos governos tentaram fazer há décadas sem sucesso: controlar o desmatamento em mais de 1.150.000 quilômetros quadrados de floresta amazônica.

Os povos indígenas administram cerca de metade da Amazônia brasileira e, ano após ano, suas terras demonstram as menores taxas de desmatamentoda região. Mas, ultimamente, a vida dos povos indígenas tem se tornado mais difícil, pois o governo tem falhado em fazer cumprir as proteções constitucionais de seus direitos à terra. Madeireiros ilegais, grileiros, garimpeiros e narcotraficantes estão penetrando ainda mais fundo na floresta, agora sob a cobertura de uma pandemia.

Como resultado, apenas nos primeiros oito meses deste ano, por volta de 6.700 quilômetros quadrados de floresta foram desmatados — o que acabará adicionando à atmosfera cerca de 226 milhões de toneladas métricas de dióxido de carbono — e mais de 10.000 incêndios tem sufocado a região debaixo de um manto de fumaça.

Os povos indígenas mantiveram a Amazônia por milênios. Eles podem continuar o fazendo, com a colaboração de todos.

Para o povo Kuikuro da região do Xingu, o passado fornece pistas de como combater grandes incêndios florestais, como o que destruiu metade de suas terras em 2015. Os incêndios florestais não faziam parte da memória recente dos Kuikuro, mas arqueólogos descobriram evidências de estratégias que eles já usavam para controlar incêndios durante o Período Quente Medieval, no início do último milênio. Terraplanagem complexa — valas, estradas e diques — podem ter sido usados como aceiros.

Hoje eles organizam brigadas para combater e prevenir incêndios florestais com maior eficiência. Os brigadistas treinam e coordenam com o Prevfogo, programa governamental criado para o mesmo fim. Embora essas parcerias tenham se mostrado eficazes, os esforços de combate a incêndios são ameaçados por cortes nos fundos federais destinados a agências ambientais.

O Conselho Indígena de Roraima, que representa 35 Terras Indígenas no norte, é outro exemplo do protagonismo indígena em mudanças climáticas. Ele tem treinado a população local para usar ferramentas de mapeamento digital para coletar dados sobre recursos naturais. Também registrou como as populações locais estavam vivenciando e respondendo às mudanças climáticas usando um aplicativo de celular chamado Alerta Clima Indígena. O esforço culminou no desenvolvimento de planos detalhados sobre como usar os recursos de forma responsável e combater as mudanças climáticas em cada território.

Essas abordagens práticas e coletivas podem ser aplicadas a muitos outros desafios, como o gerenciamento de doenças emergentes. Os Kuikuro montaram uma resposta rápida ao covid-19 em seis aldeias, usando celulares para rastrear contatos e colocar os infectados em quarentena. Eles também fizeram uma campanha online para contratar médicos e enfermeiras e comprar suprimentos, praticamente eliminando a necessidade de viajar para cidades próximas. Essas intervenções decisivas valeram a pena: quase nenhuma morte de covid-19 foi relatada lá.

Em vez de aprender com os indígenas, o governo brasileiro tem os deixado de fora das discussões sobre como administrar seus próprios territórios. Continua a tratá-los como "tutelados do estado", em vez de pessoas com o simples direito de ocupar suas terras e manter seu modo de vida. A comunidade internacional tem seguido o exemplo do Brasil. Os povos indígenas, por exemplo, permanecem como "observadores" sem direito a voto nas negociações em torno da Convenção de Mudanças Climáticas das Nações Unidas.

Mas os indígenas continuam demandando o seu espaço de direito nas mesas de decisão. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira foi um dos primeiros grupos a enviar uma delegação indígena do Brasil para as negociações climáticas da ONU. Líderes indígenas, muitos deles mulheres como a Sineia do Vale Wapichana, falaram diretamente com líderes mundiais e reportaram a suas comunidades. Eles organizaram uma coalizão Pan-Amazônica notável, que abrange os nove países da região, para alertar o mundo sobre os desafios enfrentados pelos povos indígenas e o papel do seus conhecimentos tradicionais para o combate à crise climática.

O mundo não pode continuar tratando os povos indígenas dessa maneira. As florestas da Amazônia podem absorver até 10 por cento das emissões globais de dióxido de carbono a cada ano. Suas árvores armazenam o equivalente a 10 anos de emissões globais de carbono. Ao ignorar o que os indígenas sabem sobre como proteger suas florestas, perdemos possíveis soluções para a crise climática. Perdemos tempo e dinheiro. Não é estratégico, e muito menos ético.

Sem os territórios indígenas e a aliança com os deus povos originários, o Brasil não conseguirá cumprir seus compromissos climáticos. Neste ano, o desmatamento já é o dobro do limite estabelecido pelo Plano Nacional de Mudanças Climáticas do Brasil para 2020.

O futuro das florestas tropicais e o futuro clima global estão indelevelmente vinculados à garantia dos direitos dos povos indígenas da Amazônia às suas terras e meios de subsistência. A defesa de seus territórios protege seus direitos sociais e culturais. Mas também protege ecossistemas naturais que são essenciais para o bem-estar de todos.

*Marcia Nunes Macedo é diretora do Water Program da Woodwell Climate Research Institute e pesquisadora associada do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. Valéria Paye Pereira, do povo Kaxuyana, é assessora política da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. Traduzido por Ana Beatriz Bersano.)

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Estadão
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