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Mineração em terras indígenas põe em risco índios isolados, diz liderança indígena

Um dos nomes do novo movimento indígena brasileiro, Beto Marubo que atividades de garimpo são nefastas de qualquer forma, regularizada ou não.

1 nov 2019 - 15h13
(atualizado às 15h55)
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BRASÍLIA - Às vésperas do governo apresentar uma proposta de mineração em terras indígenas, o ativista Beto Marubo, 43 anos, alerta para o impacto do garimpo em mais de uma centena de aldeias de índios isolados na Amazônia. Ele chama a atenção para o fato de esses índios não terem anticorpos para enfrentar uma gripe nem armas de mesmo poder de fogo das usadas por garimpeiros que entram com balsas nas regiões de isolados. "A demora de três dias num simples atendimento médico pode exterminar uma aldeia inteira", observa Beto.

Um dos nomes do novo movimento indígena brasileiro, Beto estava entre os convidados da ONU para a assembleia de povos indígenas realizada em abril na sede da entidade. Ele nasceu numa aldeia marubo, uma das seis etnias de língua e costumes conhecidos do Vale do Javari, no oeste do Amazonas. A preocupação de Beto, porém, é com os isolados que vivem nesse território do tamanho de Portugal. Só neste ano, foram seis ataques de garimpeiros às bases de proteção na área. Ainda adolescente, ele acompanhou o trabalho do sertanista Sydney Possuelo na demarcação da reserva e na defesa de korubos e flecheiros, alguns dos grupos isolados. Leia a entrevista:

O que é o Vale do Javari?

É uma região do tamanho de Portugal que abriga a maior quantidade de informações de índios isolados no Brasil e no mundo. Uma boa parte dos 114 registros de presença desses índios foram feitos no Javari. Ali, existem índios dos mais diversos níveis de contato com a sociedade. Além dos que estão no mato, temos 89 de recente contato, que foram contactados em 2014 e 2015, e 32 em março último. Diante de um contexto de total esfacelamento da Funai, essa é a nossa maior preocupação. Daí a importância de termos um território íntegro, para que possamos nele sobreviver.

O que a demissão do coordenador de Índios Isolados e de Recente Contato, Bruno Pereira, representou para o Javari?

Não concordamos com essa mudança. Ele foi substituído por uma servidora que tem experiência de escritório, não tem expertise, trabalho de campo. É preciso alguém com conhecimento para coordenar as 11 frentes de proteção a isolados que existem hoje na Amazônia, sendo quatro no Javari.

Há diferença entre uma decisão do governo que impacta uma aldeia indígena onde os índios falam português e um território como o Vale do Javari, onde vivem isolados?

Uma coisa é um ato burocrático e administrativo, outra coisa é uma medida voltada para a nossa região. Isso significa a morte. Se não tiver uma atenção específica e sistemática de assistência para esse indígena, ele não aguenta. Em três dias, você pode matar um grupo de cem pessoas. Em julho, teve um surto de gripe no Javari. A equipe da Funai e da Sesai estavam lá para evitar qualquer morte. Esse trabalho corre risco de ser interrompido.

Como avalia o comportamento do governo na área?

Se o Estado faltar com sua responsabilidade, o resultado é o genocídio. Os isolados não têm contato com a sociedade envolvente. Eles optaram em viver dessa forma ou por algum atrito no passado. Não têm os mesmos privilégios que nós marubos, maiorunas, matises e kanamaris, que damos entrevistas, como estou dando aqui, para falar de seus direitos.

Qual a situação dos contactados em março?

A atuação da Funai tem que ser diária. Em julho, houve um surto de gripe e os índios foram rapidamente tratados. O nosso medo é que toda essa insensatez do discurso de que o trabalho indigenista é ideológico pare essa dinâmica de assistência. Nós da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari estamos monitorando. Se morrer um parente nosso isolado, vamos responsabilizar civil e criminalmente as autoridades da Funai.

Como a morte de Maxciel Pereira dos Santos, servidor da Funai, no Amazonas, em setembro, foi recebida no Javari?

Isso impactou terrivelmente o programa de vigilância. Até hoje o presidente da Funai não ligou para a família do servidor, que trabalhou durante 12 anos no órgão. Ele estava sob ordem de serviço quando foi morto. Houve uma deserção em Atalaia do Norte, município onde fica a reserva. Eles simplesmente deixaram seus postos e saíram com medo. Enquanto não houver uma investigação séria, a tendência é o esvaziamento total. Tudo isso acarreta na falta de assistência aos isolados. Nós marubos, matises e kanamaris temos experiência para mobilizar, mas os isolados não têm.

O Javari é alvo da indústria ilegal de mineração?

As cabeceiras dos rios Jutaí e Jandiatuba são focos de garimpeiros. Ali vivem índios korubos isolados, até mesmo fora da terra indígena. Recentemente, garimpeiros tiveram acesso a essa região e chegaram a acessar a aldeia dos kanamaris. Eles disseram aos índios que se eles dessem apoio ao garimpo ganhariam uma escola, um posto de saúde. Os kanamaris procuraram o Ministério Público. Uma operação encontrou lá mais de 60 balsas. Ficou demonstrado que o garimpo se profissionalizou e está mais agressivo. Antes, era precário, com poucos recursos. Temos informações que o aumento de invasores já prejudica a vida dos índios. Os 89 korubos de recente contato, por exemplo, já têm dificuldade para caçar.

Há muita preocupação com a possível abertura das terras indígenas para a mineração?

Vende-se a ideia de que a mineração é a resolução de todos os problemas. Pelo contrário. A história já mostrou que esse é um problema tão nefasto quanto a invasão de terras, genocídios e o alto índice de assassinatos de pessoas, de ambientalistas, de indígenas. O governo federal não tem controle nem do que existe ilegalmente (de garimpo), e ainda quer criar mais isso. Sobre a ideia de que os índios vão se beneficiar, não existe isso. Na minha terra não tem supermercado. Temos que ter a terra íntegra. Para os índios isolados isso é vital. O sentimento da terra para nós não é a forma mercantilizada. A mineração vai matar nossos parentes isolados.

E garimpo que já está presente na região amazônica, de forma ilegal, o governo deveria regularizar ou retirar de lá?

Eu queria deixar claro que, numa região amazônica como a nossa, o garimpo é nefasto de qualquer jeito, regularizado ou ilegal. É contra todos os princípios que a gente tem de uso da terra. O que queremos é que as atuais normas de proteção dos territórios indígenas sejam cumpridas.

Como avalia a nomeação de pessoas ligadas ao agronegócio na Funai?

É uma preocupação. Amanhã, a Funai pode virar uma agência para fomentar os interesses do agronegócio, como foi no tempo do extinto SPI (1911-1967). O órgão só servia para aliciar índios. Não queremos que a Funai chegue a esse nível. Esperamos que o governo federal tenha sensibilidade para ouvir os servidores da Funai e nós, indígenas, queremos falar para o governo da especificidade do trabalho voltado a isolados. Não estamos falando de um governo A, B ou C, mas de uma política de Estado para o índio isolado, para o nosso parente do Javari. No Vale do Javari a Funai é Vital. Sem Funai, morre índio.

Procurada pelo Estado para comentar as declarações, a Funai não se manifestou.

Estadão
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