PUBLICIDADE

Desmatamento e tempo seco formam "barril de pólvora"

Levantamento apontou 5 mil quilômetros quadrados em condições mais suscetíveis a focos de incêndio. Período crítico vai de julho a setembro

2 jul 2021 - 05h13
(atualizado às 07h40)
Compartilhar
Exibir comentários

Uma análise feita por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e do Woodwell Climate Research Center mostra que, somadas a mais uma seca intensificada pelo fenômeno La Niña, áreas desmatadas e ainda não queimadas podem aumentar a incidência de queimadas na Amazônia especialmente de julho a setembro deste ano.

Incêndio em terra indígena no Estado do Amazonas
15/09/2019 REUTERS/Bruno Kelly
Incêndio em terra indígena no Estado do Amazonas 15/09/2019 REUTERS/Bruno Kelly
Foto: Reuters

Divulgado na quarta-feira, 30, o levantamento aponta que há quase 5 mil quilômetros quadrados de área nessas condições, quase quatro vezes a área da cidade de São Paulo.

"O pior ano é aquele em que se tem muito desmatamento e muita queimada para limpeza de área aberta. Ou um ano muito seco. Essa é a combinação para um barril de pólvora muito explosivo. Aparentemente, é o que vai acontecer agora em 2021", diz em entrevista ao Estadão o pesquisador sênior do Ipam Paulo Moutinho. Ele explica que o cenário é crítico especialmente no sul do Amazonas, mas também preocupa na região da Transamazônica e no oeste do Mato Grosso.

O estudo fez uma lista com os 10 municípios na Amazônia com mais área desmatada e não queimada desde 2019. Entre eles, somente um, Lábrea (AM), também faz parte da lista de 26 municípios que receberão as Forças Armadas neste ano, determinado em nova GLO (Garantia de Lei e Ordem). "Não sei exatamente qual é a estratégia de focar as forças do Estado para combater ou prevenir incêndios, mas certamente não é a que a ciência está indicando, especialmente por esse estudo que a gente acaba de fazer. É muito importante que os governantes dos Estados e o governo federal se atentem para esse mapeamento de onde estão as áreas críticas", destaca Moutinho.

Quais são as conclusões mais importantes da análise do Ipam?

A análise é uma tentativa de fazer uma previsão de como vai ser essa próxima estação de queimadas e incêndios na Amazônia. Alguns pontos podem orientar as ações, seja dos governos estaduais ou do federal, para que a gente evite ter a mesma catástrofe que tivemos em 2019 e 2020.

Nós analisamos o que foi desmatado de florestas em 2020 até o início deste ano, mas que não foi queimado. Depois, sobrepusemos isso com as áreas onde estão previstos eventos de seca ou de extrema seca. O que significa que, se alguém queimar essas áreas, vai ter meio milhão de hectares na Amazônia queimando. Especialmente no sul do Amazonas, mas também no oeste do Mato Grosso e na região da Transamazônica.

Lembrando que nós estamos em um tempo de pandemia de uma doença que afeta a questão respiratória. Nós podemos ver novamente a combinação desse problema sanitário com o aumento da poluição por queimada na região, como vimos em 2019 e 2020. A ideia, portanto, é criar um mapa que pode ser utilizado para ações de combate — seja do Exército, já que tivemos essa nova GLO emitida, seja dos Estados ou da própria sociedade. É uma situação bem séria que vem se anunciando.

Na análise, vocês indicam que, dos dez municípios com mais combustível pronto para queimar, somente um, Lábrea (AM), também faz parte da lista de 26 municípios que receberão as Forças Armadas neste ano. A que essa incompatibilidade se deve?

Não sei exatamente qual é a estratégia de focar as forças do Estado para combater ou prevenir incêndios, mas certamente não é a que a ciência está indicando, especialmente por esse estudo que a gente acaba de fazer. É muito importante que os governantes dos Estados e o governo federal se atentem para esse mapeamento de onde estão as áreas críticas que poderão virar mega-incêndios nesse período que se inicia agora, de mais secas e de queimadas na região.

Vocês sabem quais critérios eles usam para definir as cidades?

Eu acho que está muito ligado à proteção de algumas regiões onde se tem unidades de conservação ou terras indígenas, mas que são dependentes das localidades onde o Exército tem quartéis ou estruturas físicas estabelecidas. E não pode ser assim. O que nós vimos nos anos passado e retrasado é que as ações do Exército não tiveram um efeito sobre o desmatamento que alimenta o fogo. Sendo que grande parte do desmatamento na região alimenta o fogo e, muitas vezes, é ilegal e em florestas públicas, por conta da ação de grilagem.

O mapeamento elaborado pelo Ipam ressoa nas ações do governo federal de alguma forma?

Espero que sim. O Ipam e o Woodwell Climate Research Center, que é parceiro do instituto, são duas instituições da sociedade civil de pesquisa científica. Espero que os governos entendam essa contribuição como algo para evitar novamente todas as mazelas que nós vivemos. Com mais um ano de incêndios grandes na região (da Amazônia), eu acho que a imagem do País no mundo vai ficar extremamente deteriorada com uma série de consequências, inclusive econômicas.

A que se deve o aumento do número de focos de calor em junho, computado pelo Inpe? É a maior taxa para junho desde 2007.

Existe uma mudança de perfil no desmatamento da Amazônia, especialmente nesses dois últimos anos. A grilagem avançou muito. Ou seja, a ocupação de florestas em terras públicas. Nós estamos assistindo a uma usurpação do patrimônio público do brasileiro. Os retrocessos que o País sofreu na política ambiental ajudam nesse sinal de que pode-se continuar com a grilagem que nada vai acontecer, e também a situação de ausência do Estado em grande parte das regiões de florestas públicas. Combinado, isso causa problemas de desmatamento e fogo.

Ainda segundo o Inpe, o Cerrado teve o maior número de incêndios desde 2010. É um fenômeno parecido ao observado na Amazônia?

O Cerrado sempre foi o primo mais afetado da Amazônia. O Cerrado tem uma legislação que o protege bem menos do que o bioma amazônico e é uma área com grande interesse do agronegócio, em que o fogo continua sendo uma ferramenta para abrir pastagem. O Cerrado vem tendo cada vez mais grandes períodos de seca. Às vezes, acontecem secas mais ao sul da Amazônia e no centro-oeste. Estamos passando por uma situação como essa agora.

O fogo, que já é parte do sistema, fica mais exacerbado ainda queimando o pouco que resta de vegetação nativa do Cerrado. Tanto na Amazônia quanto no Cerrado, se nós não pararmos esse processo de degradação, desmatamento e uso insustentável da terra, e se isso for combinado com o avanço da mudança climática global, o cenário que nós vimos nos últimos dois ou três anos vai ser o novo normal.

Como o La Niña está afetando a Amazônia e o Cerrado nas secas deste ano?

São três eventos climáticos que ajudam nesse processo de trazer seca: o La Niña, que traz muita seca para o sul da Amazônia e para a região do Cerrado; o El Niño, que traz seca mais para a parte central da Amazônia; e o aquecimento do Atlântico Norte, que também reforça o La Niña.

Em anos de forte La Niña e aquecimento do Atlântico Norte, como nós estamos vivendo agora, há muita seca no sul da Amazônia. São eventos climáticos que estão se tornando mais extremos com o avanço da mudança do clima global. O La Niña, assim como o El Niño, tem um ciclo anual. Mas o fato é que, mesmo em anos que não são muitos secos, como em 2019, nós continuamos tendo grandes queimadas, porque o desmatamento continua alimentando o fogo na região. Nós estamos apagando algumas vezes as chamas, mas esquecendo do combustível que as alimenta.

O pior ano é aquele em que se tem muito desmatamento e muita queimada para limpeza de área aberta. Ou um ano muito seco. Essa é a combinação para um barril de pólvora muito explosivo. Aparentemente, é o que vai acontecer agora em 2021.

Qual é a relação desse cenário com a crise hídrica no Brasil?

A crise hídrica, seja na Amazônia ou fora dela, tem dois componentes: a falta de chuva, comum durante os períodos de muita seca, e o avanço do desmatamento, que torna o efeito de eventos extremos, como a La Niña, ainda pior. Então, você tem uma crise hídrica que é não ter mais florestas para continuar deixando o clima mais ameno e mais chuvoso e, combinado com esses eventos extremos, tem-se um risco hídrico muito grande. Não só para abastecimento de água para o consumo humano, mas também para a geração de energia nas hidrelétricas.

Tudo está interligado e a floresta acaba sendo, especialmente no contexto amazônico, o grande irrigador da região, e também fora dela. Levando em conta que 95% da agricultura brasileira não é irrigada, depende de chuva, o que nós estamos fazendo com o desmatamento, tirando a proteção dos direitos de povos indígenas e reduzindo áreas de conservação, é furar o regador do agronegócio, do abastecimento de água saudável e da geração de energia.

É difícil dizer que o aumento da conta de luz que estamos vendo agora é totalmente ligado ao desmatamento, mas o cenário do futuro é (o preço) aumentar ainda mais se nós continuarmos na mesma toada.

Quais meses podem ser os piores neste ano em termos de queimada?

De julho a setembro. São os meses críticos deste processo, já que as regiões onde estão sendo indicados os problemas permanecem em seca. O que poderia ser feito é um plano estratégico para a coibição de ações de desmatamento e queimada nas áreas que o Ipam indica. Não é simplesmente criar uma estratégia onde existe posto de apoio do Exército ou onde alguém pediu para fazer a prevenção. É preciso ter as informações de previsão de incêndios, que são as que nós estamos mostrando, inclusive em mapa.

Estadão
Compartilhar
Publicidade
Publicidade