PUBLICIDADE

Após apreensão recorde, governo cancelou multa e liberou madeira para exportadora investigada

Indusparquet, uma das maiores vendedoras brasileiras de pisos para o exterior, sofreu sanção em 2018 e consta em novo relatório de organização britânica; empresa nega irregularidades

2 fev 2021 - 22h01
Compartilhar
Exibir comentários

Após ser objeto da maior apreensão de madeira proveniente da Amazônia no Estado de São Paulo e tomar uma multa milionária do Ibama, a Indusparquet, que se intitula a maior fabricante de pisos de madeira do Brasil, recebeu o perdão na gestão Jair Bolsonaro. Nos últimos dois anos, a empresa ainda aumentou as vendas para Estados Unidos e União Europeia de produtos feitos com espécies como ipê e cumaru.

É o que revela relatório divulgado nesta terça-feira, 2, pela organização ambiental britânica Earthsight, que investiga ilegalidades e más práticas dos setores agropecuário e madeireiro em várias partes do mundo. O documento, obtido com exclusividade pelo Estadão, discute o cancelamento pelo governo de sanções à empresa, sem pedido de investigações ou esclarecimentos adicionais. A Indusparquet nega irregularidades e afirma que havia apenas ajustes administrativos "pendentes" na ocasião.

A suspensão da multa ocorreu em um cenário de flexibilizações da gestão Bolsonaro em relação ao setor madeireiro. Em 2020, por exemplo, o governo reduziu as possibilidades de inspeções de madeira em portos. Em novembro, o presidente ainda ameaçou revelar os países que compram madeira ilegalmente, mas recuou após ser criticado no Brasil e no exterior.

A Indusparquet foi alvo, em junho de 2018, da Operação Pátio, do Ibama e da Polícia Federal, de combate a fraudes no sistema do Documento de Origem Florestal (DOF). A empresa teve mais de 1,6 mil metros cúbicos de madeira serrada sem comprovação de origem apreendidos em sua filial no interior de São Paulo e recebeu multas que, somadas, davam quase R$ 1 milhão. O volume apreendido seria o suficiente para abastecer 70 carretas que, enfileiradas, se estenderiam por cerca de 1,5 km. O material foi avaliado em R$ 10 milhões, conforme noticiou o Estadão na época.

Segundo a investigação do Ibama em 2018, a madeira que estava no estoque da filial não era condizente com os registros feitos pela empresa no sistema do DOF. A filial, que tem um CNPJ distinto da matriz - e, portanto, é considerada uma pessoa jurídica diferente -, não tinha esse volume reportado no sistema do Ibama.

Pela normativa do instituto que estabelece o controle de produtos de origem florestal, o que está no pátio tem de bater com o declarado no sistema, ou algo pode estar sendo burlado. A hipótese aventada pelos fiscais na época é de que aquela madeira poderia ter sido obtida de modo ilegal. O Ibama, porém, autuou a Indusparquet, em R$ 482 mil, apenas pelo erro no registro, já que investigações posteriores teriam de ser feitas para descobrir a origem da madeira.

Na mesma operação, desta vez na matriz da empresa, em São Paulo, o instituto e a Polícia Federal se depararam com a situação contrária. O registro do DOF apontava que aquele pátio deveria ter 10,7 mil m3 a mais de madeira do que realmente foi medido pelos fiscais no local. Esse tipo de discrepância é considerada falta grave, pois abre brecha para o comércio de madeira extraída ilegalmente da Amazônia. Uma das formas pelas quais grupos criminosos se beneficiam é "esquentando" madeira ilegal com registros no DOF. Inicialmente, por essa infração na matriz, a Indusparquet foi autuada em R$ 150 mil.

A gravidade também reside no fato de que este sistema, o Sinaflor, é uma das principais ferramentas do Ibama para combater o comércio de madeira ilegal. É com base nesses registros também que importadores se baseiam para assegurar a legalidade do material que compram. Mas se o próprio sistema é violado, essa garantia também fica falha.

A Earthsight lança o relatório com foco nos mercados consumidores da madeira, principalmente o europeu, que tem feito duras críticas ao governo brasileiro pela destruição da Amazônia e tem leis locais que impõem ao importador a obrigação de garantir que está consumindo produtos de origem florestal que não incorrem em ilegalidade. Os Estados Unidos também têm uma lei nesses termos.

Desde a operação, em junho de 2018, a Indusparquet negou qualquer irregularidade e afirmou que toda a sua madeira tem origem legal. Ao Estadão, na época, disse que as discrepâncias se tratavam de "irregularidades formais e burocráticas que atingiriam percentual irrelevante do estoque da empresa". Mesmo assim, em dezembro daquele ano, o então superintendente do Ibama em São Paulo, José Edilson Marques Dias, confirmou que tinha ocorrido uma infração na matriz e triplicou aquela multa para R$ 450 mil.

Em sua justificativa, ele disse que a "autoria e a materialidade (da infração) foram devidamente estabelecidos" e que a conduta dos agentes tinha ocorrido em acordo com os procedimentos padrões e dentro da lei. Ele aumentou o valor após constatar que a empresa era reincidente e tinha tomado uma multa em 2017, sanção que continua válida.

No relatório feito pelos agentes do Ibama sobre a Operação Pátio em 2018, foi destacado ainda que gestores da Indusparquet alegaram não estar cientes da necessidade de emitir DOFs para mover a madeira da sede da empresa para sua subsidiária, embora a empresa opere há 50 anos no mercado doméstico e local.

Multa foi cancelada em 2019; empresa aponta só 'ajustes administrativos' pendentes

Em junho de 2019, porém, já na gestão Bolsonaro, o novo superintendente do Ibama em São Paulo, coronel Davi de Sousa Silva, da PM do Estado, sem experiência prévia com questões ambientais, cancelou a multa equivalente à infração registrada na filial da empresa e liberou os 1,6 mil m3 de madeira que tinham sido apreendidos.

Silva acatou a argumentação da Indusparquet de que tinha ocorrido só uma falha burocrática. A empresa, ao recorrer da multa, tinha alegado então, e afirmou novamente nesta segunda, 1º, ao Estadão, que os processos se deveram ao "uso de um pátio em unidade da empresa, vizinha e distante 3 km do pátio da matriz, para armazenamento de produto acabado destinado ao mercado interno; e as conversões de madeira bruta em produto acabado no sistema de controle do Ibama".

Em nota, a Indusparquet, ao negar que tenha feito qualquer irregularidade, disse que, "quando muito estariam pendentes ajustes administrativos em sistema de controle". De acordo com a empresa, "no sistema DOF as madeiras constavam cadastradas na matriz, quando, no entender do Ibama, deveriam estar cadastradas na filial e se encontravam com os volumes de madeira bruta tal como recebidos dos fornecedores e, ainda segundo o Ibama, deveria ter sido feita a conversão via sistema para produto acabado".

A Indusparquet, no texto da nota, afirma que não foi identificada qualquer madeira de origem ilegal. "A rigor, no caso da empresa, quando muito estariam pendentes ajustes administrativos em sistema de controle (DOF). Ou seja, a madeira constante no sistema não estava no pátio apontado e sim no segundo pátio ao lado. Além disso, parte da madeira ainda estava como madeira bruta e não convertida em produto final."

Quando uma empresa compra madeira, em tora ou serrada, ela registra no DOF este volume. Mas depois de passar por processamento na fábrica, ao ser transformada, por exemplo, em taco, uma parte disso se perde em serragem. Se ela comprou em tora, tem depois de registrar essa conversão - dizer no que ela foi transformada e quanto se perdeu nesse processo. De acordo com a Indusparquet, ainda não tinha sido feita essa atualização no sistema, daí a discrepância.

Ao justificar o cancelamento da multa, o coronel Silva apontou "vícios" na investigação e na atuação dos agentes do Ibama. Mas nenhuma evidência de tais "vícios" foi fornecida na decisão. Ele também considerou que eram "desnecessárias a produção de novas evidências ou informações" por parte da empresa. A empresa ainda recorre da multa aplicada à matriz na mesma operação.

Questionado sobre o cancelamento da multa na gestão atual, o Ibama respondeu somente que "aceitou o argumento (da empresa) de que a madeira é regular e que a infração administrativa era outra, com enquadramento adequado a infração". Em nota, o órgão ambiental afirmou que, na operação, "constatou-se um erro na informação prestada, o estoque que devia estar em um pátio, estava, na verdade, condicionado em outro pátio, gerando a inconsistência dos dados no momento da fiscalização".

O monitoramento da exploração de madeira no Brasil feita pelo Sinaflor tem uma regra muito clara: "(A) transferência de produtos florestais entre pátios de uma mesma empresa deve ser acompanhada do correspondente documento de origem (DOF), e este documento deve ser emitido com base nos estoques do pátio devidamente contabilizados no sistema." Não fazer esse registro, como disse um técnico do Ibama que acompanhou de perto a Operação Pátio, é burlar uma regra muito básica.

"Uma fraude possível é alguém comprar madeira de um local em que a extração é proibida, como uma terra indígena ou uma unidade de conservação, em geral espécies de maior valor comercial, e acobertar com aquele crédito de origem legal do DOF", explicou na época ao Estadão Roberto Cabral Borges, então coordenador de operações e fiscalização do Ibama.

Bolsonaro fala em combater 'indústria da multa' na área ambiental

Desde o início de seu mandato, Bolsonaro tem travado uma guerra com o que chama de "indústria da multa" na área ambiental. Em dois anos, várias autuações foram canceladas, técnicos de carreira do Ibama foram substituídos por militares sem relação prévia com o setor e novas multas foram praticamente paralisadas após a criação dos chamados núcleos de conciliação.

"Casos como este demonstram os desafios em combater ilegalidades no mercado global de madeira", disse ao Estadão Rubens Carvalho, investigador da Earthsight. "Com a crescente dificuldade de lidar com o problema da madeira ilegal no Brasil, é mais importante do que nunca barrar madeira suspeita de mercados internacionais. As constantes ameaças a florestas no Brasil e em outras partes do mundo mostram que governos de países importadores devem agir urgentemente para melhorar a implementação de suas leis", acrescentou ele, que critica o enfraquecimento de regras ambientais e os cortes de orçamento promovidos pela gestão Bolsonaro.

Para Elizabeth Uema, vice-presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema Nacional), o procedimento de empresa foi todo irregular diante das regras básicas do controle de madeira e nada justifica o cancelamento da multa. Ela teme que mais casos assim aconteçam. Isso porque a avaliação em primeira instância dos autos de infração passou a caber, desde o início de 2020, somente aos superintendentes de cada Estado.

Estadão
Compartilhar
Publicidade
Publicidade