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O que diz a teoria de que temos cinco apetites

Segundo os biólogos David Raubenheimer e Stephen J. Simpson, a fome nos seres humanos é muito mais complexa do que se pensava anteriormente.

4 jul 2020 - 21h09
(atualizado às 21h12)
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De acordo com os pesquisadores, temos apetites para proteínas, carboidratos, gorduras, cálcio e sódio (sal)
De acordo com os pesquisadores, temos apetites para proteínas, carboidratos, gorduras, cálcio e sódio (sal)
Foto: Getty Images / BBC / BBC News Brasil

Se os animais sabem como manter uma dieta equilibrada, por que os humanos não?

Como os biólogos e nutricionistas australianos David Raubenheimer e Stephen J. Simpson explicam em seu recente livro Eat Like the Animals (Coma como os animais, em tradução livre), faz parte do instinto dos seres humanos ter uma alimentação equilibrada, e isso foi desenvolvido ao longo de séculos de evolução.

O problema é que a fome é mais complexa do que se pensava anteriormente. Segundo Raubenheimer e Simpson, não temos um único apetite, mas cinco que operam juntos.

Sua pesquisa é o resultado de mais de 30 anos estudando os padrões de como os apetites são estimulados e regulados em cerca de 50 espécies animais e humanas na Universidade de Oxford, no Reino Unido, e na Universidade de Sydney, na Austrália.

A mensagem mais importante desta pesquisa, dizem eles por email na entrevista a seguir à BBC News Mundo, o serviço da BBC em espanhol, é que os seres humanos têm sistemas de apetite capazes de nos fazer ter uma dieta equilibrada. Mas isso só é possível quando somos expostos aos tipos de alimentos com os quais esses sistemas evoluíram.

BBC News Mundo - Qual é a noção predominante sobre o apetite?

David Raubenheimer e Stephen J. Simpson - O apetite costumava ser pensado como uma coisa única: o impulso que nos faz comer, e muitos ainda pensam assim. Como biólogos com uma compreensão de como a evolução funciona, consideramos isso improvável.

Sabíamos que um animal que ingerisse qualquer alimento, independentemente dos nutrientes específicos necessários, seria superado por animais capazes de selecionar alimentos que fornecem os nutrientes específicos de que seu corpo precisa em qualquer momento.

David Raubenheimer estuda a ecologia nutricional, uma disciplina que analisa como a nutrição animal afeta diferentes aspectos do ambiente e da biologia
David Raubenheimer estuda a ecologia nutricional, uma disciplina que analisa como a nutrição animal afeta diferentes aspectos do ambiente e da biologia
Foto: Cortesia de Raubenheimer e Simpson / BBC News Brasil

Alguns estudos, especialmente aqueles realizados em ratos, sugeriram que os animais têm apetite não apenas por alimentos, mas por nutrientes específicos, como cálcio e sódio. Foi aí que nossa investigação começou.

Percebemos que, se os animais tiverem apetites específicos por nutrientes específicos, o mais importante seriam os nutrientes necessários em quantidades maiores nas dietas, ou seja, os macronutrientes: proteínas, carboidratos e gorduras.

Também percebemos que, se existem apetites separados, o mais importante é aprender como eles interagem. Eles teriam que operar não isoladamente, mas como uma equipe esportiva que coordena seus esforços para vencer a competição evolutiva.

Foi aqui que entraram nossos experimentos com os gafanhotos. Foi a primeira vez que foi demonstrada a existência de apetites separados para diferentes macronutrientes em um inseto e a primeira vez em que foi estudada a forma como diferentes apetites trabalham juntos para o bem do animal.

BBC News Mundo - Em que consistiram esses experimentos com os gafanhotos e o que descobriram com eles?

Raubenheimer e Simpson - Em um experimento, demos a cada gafanhoto dois alimentos: um rico em proteínas em relação aos carboidratos e um rico em carboidratos em relação às proteínas.

Stephen J. Simpson é diretor-executivo do Centro de Estudos de Obesidade, na Austrália
Stephen J. Simpson é diretor-executivo do Centro de Estudos de Obesidade, na Austrália
Foto: Cortesia de Raubenheimer e Simpson / BBC News Brasil

Gafanhotos diferentes receberam combinações diferentes de alimentos, mas sempre um rico em proteínas e outro rico em carboidratos.

O extraordinário é que, além da combinação de alimentos que cada gafanhoto recebeu, todos comiam exatamente a mesma proporção correta de alimentos para obter uma dieta com a mesma quantidade de ambos os nutrientes.

Em um experimento subsequente, fomos capazes de entender por que eles selecionaram esse equilíbrio de nutrientes: é o equilíbrio que lhes permite o melhor crescimento e sobrevivência.

A maneira como aprendemos isso foi dar a cada gafanhoto um único alimento que diferia de todos os outros em seu equilíbrio de proteínas e carboidratos. Este foi um ótimo experimento, com 25 dietas diferentes.

Um grupo de gafanhotos recebeu uma dieta com o mesmo equilíbrio de nutrientes que eles selecionaram no outro experimento, enquanto outros grupos receberam dietas com muito carboidrato e outros com muita proteína.

Cada gafanhoto podia comer o quanto quisesse da dieta que lhe fora atribuída, mas ele só podia comer essa dieta.

Gafanhotos também têm apetites separados para diferentes macronutrientes
Gafanhotos também têm apetites separados para diferentes macronutrientes
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Esse experimento nos mostrou duas coisas. A primeira é que os gafanhotos que receberam dietas com o mesmo equilíbrio de nutrientes que ingeriram quando tiveram a opção de selecioná-las obtiveram melhores resultados do que os outros grupos.

Isso mostra que os gafanhotos têm como alvo a ingestão específica de proteínas e carboidratos que é melhor para eles: a "meta de ingestão".

Segundo, todos os outros grupos consumiram uma quantidade de sua dieta respectiva para chegar ao nível de proteína ideal, mas, para isso, a quantidade de carboidratos consumidos variou muito entre os grupos: aqueles em dietas ricas em proteínas ingeriram muito pouco carboidrato e aqueles em dietas com pouca proteína ingeriram grandes quantidades de carboidratos para atingir seu objetivo proteico.

Juntos, esses experimentos nos mostraram que os gafanhotos têm apetites separados por proteínas e carboidratos e, quando têm a oportunidade de escolher entre os alimentos, esses apetites trabalham juntos para equilibrar a dieta.

No entanto, quando a combinação certa de alimentos não está disponível, por exemplo, quando existe apenas um alimento desequilibrado, o apetite por proteínas vence, garantindo que a quantidade correta desse nutriente seja consumida à custa de comer muito ou pouco carboidrato.

BBC News Mundo - E o que aconteceu em seus experimentos com o que eles chamaram de "gafanhotos humanos"?

Raubenheimer e Simpson - Projetamos experimentos semelhantes para seres humanos e demonstramos que os resultados encontrados para gafanhotos também se aplicam à nossa espécie.

Quando os indivíduos foram autorizados a comer o que queriam em um menu de alimentos em que variava o equilíbrio de proteínas, carboidratos e gorduras, eles selecionaram uma dieta muito próxima da recomendada para os seres humanos (15% de energia proteica).

Quando a dieta começou a incluir apenas alimentos com um teor de proteína menor ou maior que esse valor, eles ingeriam a mesma quantidade de proteína, mas as outras quantidades variaram: nas dietas ricas em proteínas, ingeriam pouca gordura e carboidratos, enquanto em dietas de baixa proteína, ingeriam grandes quantidades de gorduras e carboidratos.

BBC News Mundo - Quais são os cinco apetites que você encontrou nos seres humanos?

Raubenheimer e Simpson - Em outras espécies, encontramos apetite por proteínas, carboidratos, gorduras, cálcio e sódio (sal).

Em nosso trabalho com humanos, consideramos apenas o apetite por macronutrientes (proteínas, gorduras e carboidratos), mas outras pesquisas sugerem que nossa espécie também tem apetite por sal e cálcio.

Ao dispor de um cardápio variado de alimentos, os humanos também optaram por uma dieta ideal para sua saúde, de acordo com estudos de Raubenheimer e Simpson
Ao dispor de um cardápio variado de alimentos, os humanos também optaram por uma dieta ideal para sua saúde, de acordo com estudos de Raubenheimer e Simpson
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Mundo - Quais são as explicações evolutivas para esses apetites específicos desenvolvidos em humanos?

Raubenheimer e Simpson - A razão pela qual temos apetites específicos por proteínas, gorduras e carboidratos é porque o corpo precisa deles em grandes quantidades para dar suporte a tudo o que fazemos: crescimento, reprodução, movimento, regulação da temperatura corporal, combater doenças, etc.

Apetites por proteínas, gorduras e carboidratos são a maneira de nosso corpo nos dizer quanto de cada um desses nutrientes é necessário a qualquer momento para desempenhar essas funções.

O mesmo se aplica ao cálcio e ao sódio. O cálcio é necessário em grandes quantidades para construir e manter os ossos, e o cálcio e o sódio fornecem eletricidade para o funcionamento do sistema nervoso.

Entre os macronutrientes, a proteína é especialmente importante, porque não apenas fornece energia (calorias), mas também nitrogênio, essencial para o crescimento, reprodução e manutenção dos tecidos.

Portanto, está claro por que temos apetite por esses cinco nutrientes.

BBC News Mundo - Mas por que não temos apetite pelos muitos outros nutrientes que nosso corpo precisa?

Raubenheimer e Simpson - A razão é que, em ambientes onde os seres humanos evoluíram, não precisávamos procurar especificamente por esses nutrientes, porque nosso corpo obtinha automaticamente o suficiente se seguíssemos as instruções dos "cinco grandes".

O potássio, por exemplo, também é essencial para gerar eletricidade no sistema nervoso, mas é encontrado na maioria dos alimentos naturais: vegetais folhosos, frutas, tubérculos, laticínios, carne, legumes, nozes, etc.

Em um ambiente natural, seria difícil manter uma dieta que não contenha potássio suficiente.

Em resumo, ao regular a ingestão dos cinco macronutrientes, obtemos todos os outros nutrientes e fibras de que precisamos através de correlações em alimentos naturais.

BBC News Mundo - Qual a correlação encontrada entre uma dieta pobre em proteínas e um alto consumo de alimentos ultraprocessados?

Raubenheimer e Simpson - Alimentos ultraprocessados são ricos em gordura e carboidratos, portanto diluem as proteínas em nossas dietas.

A chave, dizem os pesquisadores, é cercar-se de "alimentos reais e inteiros que são caçados, coletados ou cultivados em fazendas".
A chave, dizem os pesquisadores, é cercar-se de "alimentos reais e inteiros que são caçados, coletados ou cultivados em fazendas".
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

E, como mostramos em nossos experimentos com gafanhotos, quando as proteínas da dieta são diluídas, os seres humanos comem excesso de gordura e carboidratos para atingir sua meta de proteína.

Esse consumo excessivo de gorduras e carboidratos é responsável pela epidemia de obesidade, diabetes, doenças cardíacas e alguns tipos de câncer que estão assolando o mundo.

Os ultraprocessados também têm concentrações muito baixas de outros nutrientes para os quais não desenvolvemos apetites específicos porque estes são muito abundantes em alimentos naturais.

BBC News Mundo - Como a abordagem dos cinco apetites nos ajuda a resolver problemas nutricionais como obesidade e ter uma dieta mais saudável diariamente?

Raubenheimer e Simpson - A mensagem mais importante desta pesquisa é que os seres humanos, como as quase 50 espécies de animais que estudamos, têm sistemas de apetite capazes de nos dizer como ter uma dieta equilibrada.

Mas eles só podem fazê-lo quando expostos aos tipos de alimentos com os quais evoluíram: alimentos reais que são caçados, coletados ou cultivados em fazendas.

'Nosso apetite não sabe como lidar com esses alimentos ultraprocessados', explicam os pesquisadores
'Nosso apetite não sabe como lidar com esses alimentos ultraprocessados', explicam os pesquisadores
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Nos últimos 50 anos, substituímos esses alimentos em nossas dietas por outros industriais, feitos de ingredientes altamente refinados em combinações artificiais e misturados com todos os tipos de aditivos não nutricionais, ou seja, alimentos ultraprocessados. Nosso apetite não sabe como lidar com esses alimentos.

O pior é que esses alimentos são produzidos especificamente para "lidar" com nosso apetite evoluído: eles são projetados para induzir nossa biologia a comer em excesso, para o benefício da indústria de alimentos processados.

Mas existe uma solução simples. Se nos cercarmos de alimentos adequados, em nossas casas e nos restaurantes onde comemos, seguir as instruções de nossos apetites nos levará ao resultado para o qual eles evoluíram: uma dieta equilibrada, saudável e agradável que satisfaça todas as necessidades do corpo.

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