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Meu namorado morreu por acreditar em tratamentos 'alternativos' contra o câncer

A desinformação na internet pode ser perigosa. Aimee acredita que no caso de seu namorado Sean foi fatal.

28 jul 2020 - 20h14
(atualizado às 20h28)
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Aimee Wright e Sean Walsh namoravam há meses quando ele foi diagnosticado novamente com linfoma
Aimee Wright e Sean Walsh namoravam há meses quando ele foi diagnosticado novamente com linfoma
Foto: BBC THREE / BBC News Brasil

Aimee, de 23 anos, conheceu seu namorado Sean em um grupo de jovens em Liverpool, na Inglaterra. Ela gostava de cantar e tinha acabado de entrar para o coral.

"Costumávamos fazer pequenos shows com o meu coral e a banda de Sean", diz ela. "Nos divertíamos muito e foi assim que eu o conheci: por meio da música."

Aimee descreve Sean como a pessoa mais divertida que ela já conheceu. "Ele era a alma da festa. Ele adorava estar no palco e tocar violão. Ele era conhecido em Liverpool por sua banda. Sempre feliz e amável."

Aimee estava namorando Sean havia alguns meses quando ele foi diagnosticado com um linfoma de Hodgkin pela segunda vez. Ela sabia que Sean teve câncer aos 17 anos e fez quimioterapia por meses, mas ainda assim foi chocante quando ele foi diagnosticado novamente.

Na época, os médicos que tratavam de Sean disseram que ele tinha pelo menos 50% de chance de sobrevivência no longo prazo com mais quimioterapia. Mas, depois de ler muito na internet, Sean acreditou que poderia se curar do câncer se desintoxicando e mudando seu estilo de vida, evitando assim os efeitos colaterais da quimioterapia.

Sean também confiou em "scanners termográficos" (imagens mostrando mapas de calor corporal). Ele os tomou como prova de que tratamentos alternativos estavam funcionando, embora o Sistema de Saúde Britânico (NHS) advirta que não há evidências de que a termografia seja uma maneira eficaz de detectar ou controlar o câncer.

Aimee disse que, para ela, os scanners, que eram promovidos como "livres de radiação", estavam dando uma falsa esperança. "Eles me acalmaram um pouco. Acreditei que estavam funcionando até que ele precisou ser internado."

Sean tocava em uma banda e Aimee se lembra dele como a pessoa mais engraçada que já conheceu
Sean tocava em uma banda e Aimee se lembra dele como a pessoa mais engraçada que já conheceu
Foto: BBC THREE / BBC News Brasil

Infelizmente, ambos estavam errados. O autotratamento de Sean não funcionou e, em janeiro de 2018, ele foi levado às pressas para o hospital.

"Ele estava muito, muito doente. Visivelmente doente. Mas como eu estava com ele há tanto tempo, não conseguia ver isso. Uma amiga me disse: 'Aimee, Sean não parece muito bem'."

"Ele costumava responder coisas como 'oh, é a reação de Herxheimer', o que significa que você piora antes de melhorar. Isso é o que era dito em muitos fóruns de 'medicina alternativa'."

"Até chegarmos ao hospital, onde nos disseram: 'Ao longo deste ano, quando pensavam que (o linfoma) estava encolhendo, estava na verdade crescendo', e eu não me dei conta de que não estava funcionado."

Os médicos encontraram um tumor do tamanho de uma laranja no estômago de Sean e outros três pelo corpo. Sean morreu em janeiro de 2019 aos 23 anos.

'Memes foram uma fonte de ideias para tratamentos'

Pouco depois de Sean ter sido informado de que seu câncer havia retornado, ele decidiu recusar a quimioterapia. Ele e a namorada começaram a assistir a inúmeros vídeos e documentários do YouTube e a ouvir palestras.

Aimee disse que ela e Sean mergulharam em fóruns e comunidades da internet dedicadas a "curar o câncer de forma natural".

"No começo, pensei: 'Como você vai curar seu próprio câncer?' Fiquei tão chocada que disse: 'Na verdade, acho que você não deveria fazer isso'. "

"Eu não o apoiei nem a mãe dele, mas aos poucos mergulhamos completamente neste mundo."

Sean tornou-se vegano, experimentou óleo de cannabis e começou a aplicar enemas de café para tentar se curar. Ele começou a documentar sua experiência em lives no Facebook e ganhou muitos seguidores.

"Falávamos sobre teorias da conspiração, discutíamos e consolidávamos nossas crendices", acrescenta Aimee.

Memes, sem referências sobre sua origem, compartilhados online se tornaram uma fonte de ideias de "tratamento", reforçando seus pontos de vista.

"A indústria farmacêutica não cria curas, cria CLIENTES", diz este meme
"A indústria farmacêutica não cria curas, cria CLIENTES", diz este meme
Foto: INSTAGRAM / BBC News Brasil

"Acho que as pessoas não se deram conta do importante papel que os memes e esse tipo de coisa tiveram. Vê-los na tela do celular sem pensar nos fez reforçar de uma certa maneira o que pensávamos dia após dia."

Por exemplo: "As cerejas neutralizam a acidez no corpo e matam as células cancerígenas", dizia uma publicação do Instagram.

Quanto ao motivo que a levou a acreditar em informações não confirmadas cientificamente que circulam na internet, Aimee diz que era "em parte porque queríamos ter essa esperança".

"De certa forma, estávamos nos agarrando naquilo. A maneira como foi escrita e como as pessoas falavam sobre aquilo era tão convincente... Elas eram muito boas e faziam parecer verdade."

"Me senti traída por esse mundo de terapias alternativas."

Aimee diz que sente muita raiva pelos dois anos que seu namorado poderia ter recebido tratamento no hospital e não recebeu.

"Eu lamentava muito pela vida que poderíamos ter tido juntos, mas também estava tentando ser forte por ele e não mostrar que me sentia triste."

Outro meme sem qualquer comprovação científica recomenda 'matar o câncer de fome'
Outro meme sem qualquer comprovação científica recomenda 'matar o câncer de fome'
Foto: BBC THREE / BBC News Brasil

"O mundo das terapias alternativas (contra o câncer) se aproveita das pessoas quando elas estão mais vulneráveis."

"Eu me senti tão traída por esse mundo… Quando me dei conta de que havia sido radicalizada, foi como uma crise de identidade. Eu não podia acreditar no que acabara de acontecer."

Apenas quando Sean parecia estar morrendo que Aimee pensou que terapias alternativas não curariam o câncer.

"Eu não o via havia um mês — a pedido dele — porque ele se sentia um pouco desanimado e com vergonha de como estava fraco e não queria que o víssemos daquele jeito. Obviamente, eu não me importei. Mas eu lembro de vê-lo e o quanto fiquei chocada. "

Ela lembra como se sentava ao lado de Sean quando ele passava por cuidados paliativos. "Eu tinha uma cama de hospital em casa, agarrava a mão dele e tentava falar sobre qualquer coisa para distrair a mente dele."

"Ele sempre me pedia para massageá-lo porque estava muito dolorido. E eu brincava perguntando quando ele iria me massagear."

Em julho do ano passado, seis meses após a morte de Sean, Aimee escreveu uma mensagem privada no Instagram: "Minhas opiniões sobre tratamentos alternativos para o câncer mudaram, acho que custaram a vida de Sean".

Sean morreu com apenas 23 anos
Sean morreu com apenas 23 anos
Foto: BBC THREE / BBC News Brasil

Layla, uma amiga que Aimee conheceu na universidade, lembra-se de ter seguido a experiência online de Sean e escreveu a ele para descobrir mais sobre tratamentos alternativos para o câncer.

Agora que ela fez um documentário para a BBC Three sobre Sean, diz: "Parece que todos em Liverpool estavam acompanhando a história de Sean. Sempre era algo positivo, o jornal local publicou um artigo dizendo que havia superado seu prognóstico".

"Mas, de repente, Sean desativou todas as suas contas nas redes sociais e houve apenas silêncio."

Layla se lembra de pensar que um dia, como jornalista, gostaria de compartilhar a história de Sean. "Eu pensei que seria possível mostrar ao mundo o tratamento não convencional, mas a realidade trágica é que isso não ocorreu, e quando o próprio Sean percebeu já era tarde demais."

Aimee quer alertar outras pessoas sobre os perigos da desinformação, especialmente para aqueles que foram diagnosticados recentemente com câncer.

"Eu só quero que as pessoas pensem realmente na história de Sean (antes de decidir sobre o tratamento). Este é o documentário a que Sean deveria ter assistido dois anos atrás."

É tarde demais para Sean, mas Aimee acredita que os governos poderiam evitar que outras pessoas perdessem seus entes queridos da mesma maneira.

"É necessário fazer algo sobre as supostas terapias alternativas e sobre informações falsas na internet, porque é muito perigoso."

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