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Demarcação de terras não garante sobrevivência indígena, admite ONU

9 ago 2013 - 13h10
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Dia Internacional dos Povos Indígenas chama a atenção para problema que é não exclusivo do Brasil, onde tribos não têm autonomia mesmo em áreas já definidas. Entre os principais obstáculos estão interesses econômicos.

Com uma lista de leis, artigos e portarias na cabeça, o índio Mario Nicácio Wapichana, coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), não titubeia em enumerar, pelo celular, as reivindicações de seu povo. Ele representa 105 comunidades que vivem nos 1,7 milhão de hectares da área demarcada da reserva indígena Raposa Serra do Sol, a segunda maior do Brasil, em Roraima.

"O plano do governo de apoiar a sustentabilidade das terras indígenas não está acontecendo", denuncia o wapichana. Embora a formalização da reserva Raposa Serra do Sol, há mais de quatro anos, tenha marcado uma nova etapa, ela não trouxe a certeza da posse definitiva do território.

Os problemas que o índio mapeia nas leis brasileiras se multiplicam em escala global, como admitem as Nações Unidas. A organização quer focar mais o trabalho no cumprimento de tratados, acordos e arranjos, e define esse ponto como prioritário no Dia Internacional dos Povos Indígenas, nesta sexta-feira (09/08).

A demarcação de terras é um passo importante para assegurar a sobrevivência e os direitos das populações indígenas no Brasil e no mundo. Mas não é o suficiente, no entendimento da própria ONU. Historicamente, a assinatura de acordos políticos demora a sair do papel ou, mesmo depois de sua execução, especialista identificam que os direitos podem não ser permanentes.

Mas além de preocuparem-se em como subsistir e produzir nas terras que o Supremo Tribunal Federal ratificou como propriedade indígena em 2010, as comunidades da Raposa Serra do Sol precisam ainda lutar para manter um direito que, legalmente, já estaria consolidado. Na série de projetos de lei que tramitam em Brasília, o coordenador do CIR identifica diversos riscos. Cláusulas de exceção – que favorecem a concessão dessas mesmas terras a grupos empresariais para a exploração de recursos naturais – ameaçam a soberania dos povos nativos sobre áreas já demarcadas.

Wapichana diz que mesmo antes da aprovação desses instrumentos legais, fazendeiros já encontram estímulos para invadir áreas demarcadas. "Houve um retrocesso na política indigenista nacional", afirma o coordenador, que teme a transferência de algumas competências do Executivo ao Legislativo, onde a oposição aos índios é intensa. Mas ainda há a Portaria 303, por exemplo, de iniciativa do próprio Executivo, que é tida como uma das principais ameaças. Ela prevê uma série de salvaguardas à exploração das terras e restringe o direito de uso das áreas já demarcadas.

Sem garantias

E a preocupação do Wapichana não é desmedida. A garantia é do ativista dos direitos indígenas Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) na década de 90. "O momento é crítico e a preocupação do índio se justifica. A garantia desses direitos é algo que precisa ser exercido permanentemente", ratifica.

Para Santilli, o maior problema é fazer valer os direitos indígenas. "Eles não têm representação política no Congresso Nacional, então a garantia desses direitos passa, em grande medida, pelo apoio de parcelas importantes da sociedade brasileira não-indígena". A bancada ruralista figura historicamente como oposição e afirma que as terras demarcadas na Raposa Serra do Sol foram de produtivas ao abandono.

No Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 896 mil pessoas se declararam indígenas, o que corresponde a menos de meio por cento da população do país. No entanto, a mesma pesquisa revela que 12,5% do território nacional são áreas oficialmente reconhecidas como indígenas.

Por outro lado, aponta Santilli, a distribuição dessas terras é desigual. "Na região da Amazônia Legal estão cerca de 60% dos índios brasileiros e 99% das áreas demarcadas", compara. Na conta do especialista, os 40% restantes estão espremidos em 1% das zonas demarcadas ou vivem ainda a espera do reconhecimento de novas reservas. Ele ressalta ainda que, mesmo para os já assentados, o espaço é exíguo e a demarcação nem sempre contempla os recursos naturais necessários para viabilizar a subsistência ou a produção.

Perda da diversidade

No Brasil, 305 etnias foram identificadas. O respeito a essa multiplicidade cultural é outro problema das comunidades em escala global, como explica Myrna Cunningham, ex-diretora e atual membro do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas das Nações Unidas. Ela foi a primeira indígena do povo Miskita, da Nicarágua, a se formar em medicina.

"O Brasil precisa se comprometer mais com os índios", sentencia Cunningham. Ela afirma que a diversidade linguística é um dos grandes patrimônios culturais dos povos nativos do Brasil, especialmente na Amazônia, mas muitos desses idiomas estão se perdendo. Em parte, sugere, isso acontece pela forma como o país tem gerenciado as regiões de florestas e colocado povos indígenas sob ameaça.

No mundo, mais de 370 milhões de indígenas vivem em 90 países. A médica identifica a aculturação como uma ameaça global, especialmente quanto à falta de respeito ao modelo de desenvolvimento dos índios, que leva em consideração o conhecimento ancestral das tribos. "A forma como conservam seus recursos, como usam a medicina, seus conceitos de bem-estar não estão sendo respeitados", pondera. Ela garante, no entanto, que os índios não são contrários a investimentos. Eles querem não apenas ser consultados, mas também ter poder de decisão em questões que interferem diretamente em sua vida e em suas terras.

Na Nicarágua é destacada pelos avanços e pelos 25 anos de reconhecimento da autonomia política e legal dos indígenas do país. Eles contam com uma legislação especial e conquistaram direitos coletivos sobre as terras. No entanto, em outros países ainda há muito a ser feito.

A representante das Nações Unidas aponta a precariedade do Chile, onde índios Mapuche, que lutam pelo direito a suas terras ancestrais, têm sido tratados pelo governo como terroristas. Em Honduras e na Guatemala, os problemas incluem conflitos com militares armados.

Já no Norte do Quênia, populações inteiras podem ser afetadas com a construção de uma barragem, que vai obrigar a uma mudança no estilo de vida. A realidade desse povo do continente africano se assemelha ao drama das populações indígenas que questionam Belo Monte, no Brasil, como lembra Myrna Cunningham.

Deutsche Welle A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas.
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