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Bolsonaro veta liberação imediata de recursos e permite contingenciamentos de fundo para ciência

Governo federal sanciona lei que proíbe bloqueio de recursos do FNDCT, mas veta trechos considerados essenciais por pesquisadores; entidades pedem que Congresso derrube vetos

13 jan 2021 - 09h22
(atualizado às 12h20)
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O presidente Jair Bolsonaro vetou na terça-feira, 12, dois trechos da nova lei complementar 177/21 que determinavam a liberação imediata dos recursos retidos e proibiam novos contingenciamentos no Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). A decisão é criticada por organizações de pesquisadores,que pedem a derrubada dos vetos pelo Congresso Nacional, no qual o projeto de lei original havia sido aprovado com ampla maioria.

Presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich diz que os dois vetos fazem com a proibição ao bloqueio de recursos prevista na lei não tenha efetividade na prática. "Tudo bem que passa a ser fundo financeiro, que pode passar de um ano a outro. Mas não haverá o que passar, devido ao contingenciamento. Se você não proíbe o contingenciamento, volta tudo a tudo o que tem sido até agora, com contingenciamentos de até 90%. Foi uma maneira de liquidar com esse projeto de lei", defende.

Ele destaca que a sanção total do projeto era aguardada pelo setor, que enfrenta cortes sucessivos. "O primeiro veto afeta a transferência dos recursos contingenciados. Isso era uma esperança que nós tínhamos em virtude do forte corte no orçamento de ciência e tecnologia, de 30%, no ano passado para esse. O orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia está muito reduzido, isso significa uma situação precária para a ciência e inovação no País", comenta.

"No ano de 2021, estão previstos 550 milhões para toda a ciência e inovação no Brasil. Isso é ridículo. Não só não sobra nada, como falta. E falta para projetos importantes, em saúde, em biotecnologia, em bioeconomia, o que fortaleceria balança comercial do País."

Crítica semelhante é feita pelo Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies). "Foram derrubados exatamente os pilares que poderiam tirar a ciência brasileira da pior crise de sua história", destacou em comunicado. "A maioria esmagadora dos recursos é contingenciada todo ano pela equipe econômica do governo federal para compor o superávit primário. Dessa forma, sobra pequena quantidade dos recursos do FNDCT para instituições de pesquisa e a empresas brasileiras, sobretudo de pequeno e médio porte."

Já a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) disse que "Bolsonaro vetou artigos centrais do PLP 135, desfigurando o centro da proposta, que era impedir o contingenciamento dos recursos do FNDCT. Agora nossa luta será pela derrubada dos vetos, garantindo verbas para a ciência, como aprovado pelo Congresso."

Os vetos ao projeto de lei original (135/20) ocorreram por "contrariedade ao interesse público", segundo justificativa da presidência ao Senado. Um deles se refere à imediata execução orçamentária dos recursos, de aproximadamente R$ 4,3 bilhões do FNDCT, que estão em reserva de contingência. "A medida contraria o interesse público, pois forçará o cancelamento das dotações orçamentárias das demais pastas, que já estavam programadas para o exercício", justifica o governo Bolsonaro.

Além disso, também foi barrado o inciso que vedava a alocação orçamentária de valores vinculados ao FNDCT em reservas de contingência, cujo veto foi justificado por colidir com dispositivos legais e poder implicar em aumento não previsto de despesas.

Os recursos do fundo são destinados a programas, projetos e atividades, "compreendendo a pesquisa básica ou aplicada, a inovação, a transferência de tecnologia e o desenvolvimento de novas tecnologias de produtos e processos, de bens e de serviços, bem como a capacitação de recursos humanos, o intercâmbio científico e tecnológico e a implementação, manutenção e recuperação de infraestrutura de pesquisa".

"É vedada a imposição de quaisquer limites à execução da programação financeira relativa às fontes vinculadas ao FNDCT, exceto quando houver frustração na arrecadação das receitas correspondentes", destaca a lei, que inclui organizações sociais entre as instituições que podem acessar os recursos.

Após pressão da comunidade científica, o PL 135 havia sido aprovado no ano passado, com ampla margem no Senado (71 votos favoráveis e um contrário) e na Câmara dos Deputados (385 votos a 18). Na prática, a lei permite que recursos não utilizados durante o ano possam ser incluídos no orçamento seguinte, em vez de voltar para a União.

Criado em 1969, o FNDCT é constituído principalmente por impostos recolhidos de empresas e serve para financiar pesquisas e inovações em diversas áreas. Nas últimas décadas, por exemplo, os resultados obtidos incluem a instalação de parques tecnológicos e laboratórios no País, descobertas de tratamentos para o câncer e até inovações usadas pelas Forças Armadas, por setores de energia ou pelo agronegócio.

Entidades científicas relatam, no entanto, que entre 85% e 90% do valor acabou retido pelo governo federal nos últimos anos - a maior parte, portanto, não chega a ser aplicada em ciência. No ano passado, de R$ 5,2 bilhões previstos no fundo, só houve autorização inicial de uso para R$ 600 milhões, ou 11,5%. Mais R$ 300 milhões, de crédito extraordinário, foram acrescentados depois por causa da pandemia.

Em julho passado, mais de 20 entidades haviam encaminhado ao Senado um manifesto em favor do projeto de lei. Entre elas, estão a própria ABC, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).

"Devemos ao FNDCT a instalação e a manutenção, em universidades e instituições de pesquisa, de equipamentos e laboratórios que foram fundamentais para o avanço da ciência brasileira, para a saúde da população, para a economia do País e para a segurança nacional", dizia a nota conjunta.

Parte dos estudos financiados pelo fundo estão voltados à covid-19

Atualmente, boa parte dos estudos financiados pelo FNDCT está voltada para o combate à covid-19, segundo pesquisadores. Os projetos vão desde investigar tratamentos para a doença a desenvolver novos equipamentos hospitalares e exames.

Um deles, por exemplo, pretende incorporar ao SUS um novo teste do tipo RT-PCR, o único capaz de detectar casos ativos da doença e que tem sido um dos maiores gargalos do Brasil durante a pandemia. Com a inovação, o exame seria feito por meio da coleta de saliva, mais confortável e com resultado em cerca de 30 minutos.

Reitora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Soraya Smaili lembra que a pandemia provocou aumento de investimento em pesquisa em outros países, a exemplo de Espanha, Alemanha e Estados Unidos. "Quando não tem ciência, não tem vacina, não tem mecanismos de vigilância, não tem tratamento. A ciência salva vidas."

"Estamos falando de recursos que poderiam ser aplicados em um sistema que está profundamente limitado", afirma a reitora, que aguardava a sanção com "bastante esperança e ansiedade". "Nós tivemos queda de recursos no orçamento dos Ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia, além de autarquias como Capes e CNPq."

Os pesquisadores explicam ainda que, apesar de haver outros mecanismos de financiamento, inclusive com a iniciativa privada, o Estado acaba concentrando gastos em pesquisa básica e aplicada. Por causa dos riscos, o mais comum é que grandes empresas destinem recursos já na fase de desenvolvimento de produto.

Essa realidade é constatada mesmo em países com maior tradição da iniciativa privada, como os Estados Unidos. "Por mais que haja doações, nunca supera o investimento público", diz Soraya.

Estadão
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