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Bola que vira pessoa

Um dos grandes problemas da embriologia é saber como surge a simetria bilateral do corpo

22 set 2018 - 06h12
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Imagine uma bola no chão e você ao lado dela, de quatro. Nessa posição, compare mentalmente a forma da bola com a do seu corpo. Ao contrário da bola, você é assimétrico. A bola não tem frente nem traseira. Além disso, você tem costas e abdome. Mas tem algo em você que é semelhante à bola. Imagine um plano vertical que corta seu corpo, passando pelo seu nariz, correndo ao longo da coluna e terminando entre as pernas. Esse plano divide seu corpo em duas metades, a direita e a esquerda.

Uma metade é a imagem no espelho da outra. Isso vale para narinas, olhos, metades da boca, mamilos, braços, pernas e pés. Agora, se você imaginar um plano cortando a bola em duas metades, as metades também serão imagens espelhadas uma da outra. A grande diferença entre você e a bola é que no seu caso só existe um plano que divide seu corpo em metades simétricas.

A existência desse plano que divide nosso corpo em duas metades é que permite a cientistas afirmar que nós, e a maioria dos vertebrados, temos simetria bilateral. O interessante é que nosso corpo, com parte dianteira e traseira distintas, dorso e ventre distintos, se originou de uma bola, o óvulo de nossa mãe fecundado pelo espermatozoide de nosso pai. Um dos grandes problemas da embriologia é saber como, ao longo dos primeiros meses de gestação, a simetria praticamente perfeita dessa bola é quebrada diversas vezes e passa a ter frente e trás, dorso e ventre, lado esquerdo e direito. Ou seja, como uma bola se transforma em um embrião com simetria bilateral. Já conhecemos diversos genes envolvidos nessas quebras. A novidade é que agora foi descoberto mais um gene envolvido na quebra da simetria bilateral do intestino.

O que eu não contei é que nossa simetria bilateral não é perfeita. Existem pequenas diferenças: por exemplo, o fato de nas mulheres o pé esquerdo ser maior que o direito. Nos homens é o oposto. Mas as grandes diferenças estão no interior de nosso corpo. O coração está virado para o lado esquerdo do tórax. E nosso cérebro é assimétrico, com os centros relacionados à linguagem do lado esquerdo. Além disso 90% das pessoas são destras, tendo mais habilidade na mão direita.

É espantoso que essas quebras de assimetria lateral ocorrem sempre da mesma maneira. A maioria das pessoas é destra e somente uma em cada 2 mil tem o coração invertido, localizado no lado direito do peito.

Nosso intestino é enrolado sempre no sentido anti-horário de quem abre o abdome da pessoa. Nos raríssimos casos em que isso não ocorre, surgem dobras que provocam obstruções intestinais, uma síndrome muito rara.

Logo no inicio do desenvolvimento, o intestino surge como um pequeno tubo que corre ao longo do eixo anteroposterior do feto, pendurado por uma membrana ao dorso do animal. Mas, quando começa a crescer, o intestino se enrola, sempre no sentido anti-horário. O que os cientistas observaram é que, logo antes de começar o enovelamento, um dos lados do tecido que envolve o tubo se espessa pelo aumento da quantidade de material entre as células, forçando um enrolamento, e o enrolamento sempre continua nessa direção. Esse espessamento é a ação de uma enzima codificada por um gene chamado Tsg6, que modifica as moléculas presentes entre as células, que passam a se organizar numa matriz.

Essa matriz inibe o crescimento de vasos desse lado. Já do outro lado (o esquerdo, de dentro da curvatura), os vasos sanguíneos continuam a crescer. O resultado é que o tubo que era simétrico agora se curva, formando uma espiral, e no lado de dentro da curva se localizam os vasos sanguíneos que vão irrigar o intestino. Ele cresce e se enrola e vai ocupar toda a cavidade intestinal. Esse é o mecanismo que leva à quebra da simetria bilateral do intestino.

Apesar desse novo mecanismo explicar porque o intestino se curva no sentido anti-horário, fica a pergunta: porque essa enzima codificada pelo gene Tsg6 só aparece de um dos lados do intestino? E mais: por que sempre do mesmo lado? Esse é um bom exemplo de como uma descoberta científica responde uma questão, mas cria novas perguntas.

MAIS INFORMAÇÕES: MIDGUT LATERALITY IS DRIVEN BY HYALURONAN ON THE RIGHT. DEVELOPMENTAL CELL, VOL. 46, PÁG. 533 (2018)

*FERNANDO REINACH É BIÓLOGO

Estadão
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