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A polêmica sobre problema matemático com demonstração 'impenetrável' que quase ninguém consegue verificar

Em 2012, o japonês Shinichi Mochizuki anunciou que havia resolvido um dos maiores mistérios da teoria dos números: a conjectura abc. Mas sua demonstração é tão complexa que quase ninguém é capaz de dizer se está certa ou errada.

16 mai 2021 - 13h01
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Em 2012, o japonês Shinichi Mochizuki anunciou que havia resolvido um dos maiores mistérios da teoria dos números: a conjectura abc. Mas sua demonstração é tão complexa que quase ninguém é capaz de dizer se está certa ou errada
Em 2012, o japonês Shinichi Mochizuki anunciou que havia resolvido um dos maiores mistérios da teoria dos números: a conjectura abc. Mas sua demonstração é tão complexa que quase ninguém é capaz de dizer se está certa ou errada
Foto: Getty Images / BBC / BBC News Brasil

Ela se chama conjectura abc e é um dos maiores mistérios da matemática hoje.

Desde que foi formulada, na década de 1980, muito tem se falado sobre como sua demonstração revolucionará o campo da teoria dos números e entrará para a história como uma das maiores conquistas matemáticas do século.

Por isso, quando em agosto de 2012 começou a circular a notícia de que a conjectura abc havia finalmente sido demonstrada, houve um frenesi na comunidade matemática.

O autor do feito era o japonês Shinichi Mochizuki, matemático da Universidade de Kyoto, no Japão, considerado uma das mentes mais brilhantes de sua geração.

Os quatro artigos acadêmicos de cerca de 500 páginas foram publicados no próprio site de Mochizuki e, embora fosse estranho que um pesquisador de sua estatura não tivesse publicado um trabalho tão importante em uma revista científica de renome, naquele momento isso não importava.

Ali estava a tão esperada demonstração, disponível a apenas um clique de distância para qualquer pessoa baixar e ler.

Mas rapidamente os matemáticos perceberam que nem todo mundo conseguiria entender.

A demonstração foi escrita em um estilo enigmático que era estranho para a maior parte da comunidade e foi classificada pela revista científica Nature como "impenetrável".

O matemático Jordan S. Ellenberg, pesquisador e professor da Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA, foi além e afirmou:

"Ao olhar para ela, você se sente um pouco como se estivesse lendo um artigo do futuro ou do espaço sideral."

O problema é que, se ninguém conseguia entender a demonstração, ela tampouco podia ser verificada.

Levou 5 anos para que personalidades de peso ao redor do mundo declarassem publicamente que haviam conseguido compreender a demonstração. Entre eles, estava outro gênio da área, o jovem alemão Peter Scholze, mas o que ele tinha a dizer não agradaria Mochizuki.

Em entrevista exclusiva à revista Quanta, Scholze e seu colega Jakob Stix afirmaram que a demonstração continha um erro "sério e insolúvel", e que a conjectura abc permanecia portanto em aberto.

Agora, o que a Quanta descreveu como um "duelo de titãs da matemática" acaba de ganhar um novo capítulo.

Quando a + b = c

A conjectura abc parte de uma equação muito simples: a + b = c.

No entanto, essa aparente simplicidade contém uma ligação profunda e até agora desconhecida entre a soma e a multiplicação de números inteiros.

(Se você está se perguntando onde está a multiplicação, já que só consegue ver uma soma, vá para o final desta reportagem, onde encontrará uma explicação mais detalhada da conjectura.)

Diferentemente de outros problemas famosos, essa conjectura foi formulada há relativamente pouco tempo, em 1985, e somente com o passar dos anos os matemáticos foram percebendo suas enormes consequências.

É que, se for demonstrada, desencadearia a solução para uma série de problemas matemáticos de uma só vez.

A conjectura abc expressa uma ligação entre a soma e a multiplicação de números inteiros que é tão elementar quanto profunda
A conjectura abc expressa uma ligação entre a soma e a multiplicação de números inteiros que é tão elementar quanto profunda
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

No entanto, a maioria dos especialistas em teoria dos números estava convencida de que provar essa conjectura era uma tarefa tão colossal que nem sequer tentou.

Não foi o caso de Mochizuki.

De talento precoce a referência mundial

Mochizuki nasceu em Tóquio em 1969, mas se mudou para os Estados Unidos com a família quando era criança.

"Seu talento precoce rendeu a ele uma vaga na graduação do Departamento de Matemática da (Universidade de) Princeton quando tinha apenas 16 anos", diz reportagem na revista Nature.

"Rapidamente ele se tornou uma lenda por seu pensamento original e foi direto para o doutorado", acrescenta o texto publicado em 2015.

Após completar o doutorado, Mochizuki passou dois anos em Harvard e, aos 25 anos, voltou ao Japão para assumir um cargo no Instituto de Pesquisa de Ciências Matemáticas (RIMS) da Universidade de Kyoto, onde trabalha até hoje.

Uma vez ali, ele resolveu uma conjectura apresentada por Alexander Grothendieck, que costuma ser descrito como o maior matemático do século 20.

Foi com este trabalho de 1996 que Mochizuki consolidou o seu prestígio internacional. Mas havia algo nele que estava mudando.

"Seu trabalho estava atingindo níveis mais altos de abstração, e ele estava escrevendo artigos cada vez mais impenetráveis para seus pares", explica a Nature.

Sua demonstração da conjectura abc é a prova final desse processo.

"Tentei ler e, em algum momento, desisti. Não entendo o que ele está fazendo", disse à Nature o matemático alemão Gerd Faltings, que não só ganhou uma medalha Fields ("o Nobel" da matemática), como também foi orientador da tese de graduação e doutorado de Mochizuki nos EUA.

10 anos para entender

A demonstração de Mochizuki da conjectura abc é baseada em décadas de pesquisa em uma área da geometria aritmética chamada geometria anabeliana, que é famosa por sua extrema dificuldade (e falta de especialistas).

Na verdade, as mais de 500 páginas que publicou em 2012 fazem referência a centenas de outras páginas de trabalhos anteriores dele.

Sua complexidade é tanta que o próprio Mochizuki estimou que um estudante de pós-graduação de matemática levaria 10 anos para entendê-la.

Os pesquisadores, por sua vez, devem desativar "os padrões de pensamento que instalaram em seus cérebros e que adotaram por tantos anos" para compreendê-la, escreveu o japonês em seu site.

"A demonstração é difícil ao extremo", reconhece o doutor em matemática espanhol Francisco R. Villatoro em entrevista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.

Professor da Universidade de Málaga, na Espanha, ele explica que "este tipo de demonstração está repleta de neologismos para se referir a conceitos muito, muito semelhantes entre si, mas que, segundo o autor, são diferentes, e é importante perceber a pequeníssima diferença. "

No fim de 2015, Oxford sediou um encontro de matemáticos que tentavam entender a demonstração de Mochizuki, que não compareceu ao evento
No fim de 2015, Oxford sediou um encontro de matemáticos que tentavam entender a demonstração de Mochizuki, que não compareceu ao evento
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Na verdade, são necessárias tantas palavras novas que acabam usando palavras "divertidas e exóticas".

"Assim, depois de centenas de páginas com definições de novos termos, começam a aparecer resultados em que todas as palavras são novas", diz Villatoro, reconhecendo que "isso torna muito difícil seguir a linha de raciocínio".

No fim de 2015, foi organizado um workshop na Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde matemáticos de todo o mundo se reuniram para tentar entender a demonstração. Mochizuki recusou o convite, mas vários de seus colaboradores compareceram para falar por ele.

A ideia era que eles explicassem os artigos para a comunidade científica e tirassem suas dúvidas. Mas isso não aconteceu.

"Não basta que haja pessoas que declarem que leram o argumento e que está tudo bem; alguém tem que ser capaz de explicá-lo", escreveu em 2017 o matemático Frank Calegari, da Universidade de Chicago, nos EUA, em seu blog pessoal.

Cinco anos depois de publicada, a demonstração de Mochizuki ainda estava no limbo, sem ser descartada ou aceita por falta de uma voz qualificada e independente capaz de fazer pender a balança.

Até que Scholze decidiu se manifestar.

Corolário 3.12

Segundo a revista Quanta, o matemático alemão foi um dos primeiros a ler o trabalho de Mochizuki.

"Scholze, que tinha apenas 24 anos na época, acreditava que a demonstração era falha. Mas em geral ele se mantinha fora das discussões sobre artigos acadêmicos, exceto quando questionado diretamente sobre o que pensava", explica.

Peter Scholze exibindo sua medalha Fields em 2018. Ele tinha 30 anos quando ganhou o principal prêmio do mundo em matemática
Peter Scholze exibindo sua medalha Fields em 2018. Ele tinha 30 anos quando ganhou o principal prêmio do mundo em matemática
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Mas, depois de ler a postagem de Calegari, ele decidiu escrever uma mensagem na seção de comentários afirmando: "Sou completamente incapaz de seguir a lógica após a figura 3.8 na demonstração do corolário 3.12."

"Aqueles que asseguram que compreendem a demonstração não estão dispostos a admitir que nesse ponto é preciso explicar mais", acrescentou.

O comentário provocou um rebuliço na comunidade científica.

A falha no corolário 3.12 não só derrubava toda linha de raciocínio da demonstração, como também estava sendo apontada por Scholze, que já era considerado uma autoridade em geometria aritmética e que logo depois acabaria ganhando a prestigiada medalha Fields.

Tamanha foi a polêmica que o alemão foi convidado a se encontrar com Mochizuki no Japão. Ele viajou para lá em 2018 com Stix, um especialista em geometria anabeliana da Universidade Goethe de Frankfurt, na Alemanha.

Mas o encontro de titãs foi um fracasso.

Scholze e Stix saíram frustrados com a falta de receptividade do japonês de reconhecer o erro. Mochizuki, por outro lado, garantiu que o problema dos alemães é que eles não entenderam seu trabalho.

Mas a balança da comunidade matemática pendeu para o lado de Scholze e Stix.

"Acredito que a conjectura abc ainda está em aberto", afirmou Scholze à revista Quanta. "Qualquer pessoa tem a oportunidade de prová-la."

A nova polêmica

A questão parecia resolvida até março deste ano, quando a PRIMS, revista científica do RIMS, publicou os quatro artigos acadêmicos de Mochizuki com alterações mínimas, diz Villatoro.

Em outras palavras, sem corrigir o corolário 3.12.

A edição de março da PRIMS é dedicada à demonstração da conjectura abc de Mochizuki
A edição de março da PRIMS é dedicada à demonstração da conjectura abc de Mochizuki
Foto: PRIMS / BBC News Brasil

"Agora temos a situação ridícula em que abc é um teorema em Kyoto, mas uma conjectura no resto do mundo", escreveu Calegari quando ainda havia rumores de que a PRIMS publicaria o trabalho de Mochizuki.

"A revista científica para esse tipo de resultado é a Annals of Mathematics", explica Villatoro, observando que a publicação é "muito, muito rigorosa" com a revisão por pares.

E como Scholze é um dos maiores especialistas mundiais em geometria aritmética, acrescenta o espanhol, seria de se esperar que ele fosse um dos pares escolhidos para revisar os artigos de Mochizuki.

Tendo esse "não" garantido, "a Annals of Mathematics nunca o publicaria", afirma.

Mas a escolha da revista também não ajuda a dissipar as dúvidas em relação a Mochizuki. Além de trabalhar no RIMS, ele é editor-chefe da revista.

Mochizuki não participou da revisão de pares, algo usual nesse tipo de situação de conflito de interesses. No entanto, a comunidade matemática está pressionando o PRIMS para revelar quem participou e que argumentos deram para sua aprovação, explica Villatoro.

Mochizuki é membro do Instituto de Pesquisa de Ciências Matemáticas da Universidade de Kyoto e editor-chefe de sua revista científica, a PRIMS
Mochizuki é membro do Instituto de Pesquisa de Ciências Matemáticas da Universidade de Kyoto e editor-chefe de sua revista científica, a PRIMS
Foto: Universidade de Kyoto / Raymond Terhune / BBC News Brasil

De acordo com seus cálculos, há algumas centenas de pesquisadores em geometria aritmética no mundo, enquanto deve haver cerca de 50 especialistas em geometria anabeliana.

"Neste momento, pode haver umas cinco pessoas no mundo a favor de Mochizuki", diz ele. "E todos estão sob seu guarda-chuva acadêmico."

Por outro lado, acrescenta, "a grande maioria da comunidade abandonou a ideia de tentar compreender a demonstração por considerar falha. Enquanto o contra-argumento não for claro, ao que já se sabe que está errado, não vale a pena perder tempo nisso. "

Pode parecer que é a história de um gênio incompreendido "lutando contra o sistema, contra uma espécie de conspiração contra ele", afirma Villatoro. Mas não é o caso, ele garante.

Faltings, o mentor de Mochizuki, foi contundente a esse respeito.

"As pessoas têm o direito de ser tão excêntricas quanto quiserem", disse ele à revista Nature na época. No entanto, ele acrescentou, na matemática "não basta ter uma boa ideia: também é preciso saber explicá-la aos outros".

A conjectura abc explicada por um doutor em matemática

Se você chegou até aqui, é porque quer saber mais a fundo o que é a conjectura abc, então passamos a palavra ao pesquisador Francisco R. Villatoro para explicar a matemática sem interrupções jornalísticas:

A conjectura abc é muito útil para abordar um problema importante na teoria dos números: resolver as equações diofantinas por um procedimento de busca sistemática.

Chamamos de equação diofantina uma equação cujas soluções devem ser números inteiros; costumam ser polinômios (somas de produtos) em várias incógnitas. O exemplo mais conhecido é o teorema de Pitágoras para triângulos retângulos, que afirma que a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa, ou em símbolos a² + b² = c². A solução mais conhecida é a = 3, b = 4 e c = 5, uma vez que 9 + 16 = 25. Nesse caso, existem infinitas soluções, chamadas ternos pitagóricos.

No entanto, uma obra matemática muito famosa nos diz que a maioria das equações diofantinas tem um número finito de soluções ou não tem nenhuma. Graças a isso, se poderia pensar que todas as soluções podem ser encontradas usando um método de busca sistemática. Você começa testando com números pequenos e acabará encontrando todas as soluções.

O problema é que para fazer essa busca sistemática você tem que ter algum resultado matemático que limite o tamanho máximo das soluções, que diga a você: "Se você checou até aqui e não encontrou a solução, então não há solução". O que você precisa é de um limite superior e em muitas equações diofantinas ele pode ser obtido graças à conjectura abc.

Para explicar a conjectura abc, temos que lembrar a fatoração de números inteiros. Todo número inteiro pode ser fatorado como um produto de números primos, sendo estes os números cujo único divisor são eles próprios e, é claro, um, que descartamos.

Por exemplo, o número 12 pode ser fatorado como 2 · 2 · 3 = 2² · 3, ou o número 198 como 2 · 3 · 3 · 11 = 2 · 3² · 11. Muitos números têm muitos fatores primos pequenos repetidos muitas vezes.

A conjectura abc afirma que para três números tais que a + b = c, se os números a e b têm um grande número de fatores primos pequenos, diferentes entre a e b, então o número c terá algum fator primo muito grande.

Por exemplo, na soma 2⁵ · 3¹⁸ + 5⁶ · 7¹⁰ · 23² = 11⁹ · 691 · 1433, o resultado tem um fator primo muito grande, 1433, em comparação com os fatores primos somados.

Este resultado permite limitar o tamanho das raízes de muitas equações diofantinas, pois permite limitar o tamanho dos fatores primos das somas a partir dos de suas parcelas.

Há outras maneiras de formular a conjectura abc. O mais relevante é que, em geral, é muito difícil relacionar o resultado de uma soma com o produto de seus fatores primos. Os resultados que alcançam isso, como a conjectura abc, nos oferecem uma relação muito útil para resolver muitos problemas matemáticos.

Portanto, a demonstração da conjectura abc terá um grande impacto no campo da teoria dos números.

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