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Vamos dirigir no escuro na pandemia sem dados confiáveis, diz pesquisador da Fiocruz

8 jun 2020 - 16h39
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Contra uma doença sem tratamento ou vacina, a informação é uma das ferramentas mais importantes para conter o avanço do novo coronavírus, e a decisão do governo federal de reduzir a transparência dos dados sobre a Covid-19 levará o país a dirigir no escuro, disseram pesquisadores.

Paciente com coronavírus é tratado em hospital em Manaus (AM) 
03/06/2020
REUTERS/Bruno Kelly
Paciente com coronavírus é tratado em hospital em Manaus (AM) 03/06/2020 REUTERS/Bruno Kelly
Foto: Reuters

O Ministério da Saúde deixou de divulgar desde sexta-feira informações detalhadas sobre a disseminação do coronavírus no Brasil em sua plataforma online e passou a fornecer apenas os registros de mortes e casos nas últimas 24 horas. Além da mudança, no domingo a pasta divulgou números divergentes --que depois foram corrigidos--, colocando em dúvida a qualidade das informações.

"Não ter dados atualizados e confiáveis durante uma pandemia dessa proporção é como dirigir no escuro. O Brasil está indo na contramão do que fazem todos os países e do que é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesse momento, quando ainda não temos uma vacina, ter informações é a melhor ferramenta que temos à disposição para enfrentar essa pandemia", disse Carlos Machado, pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz.

O pesquisador lembrou que, mesmo com o máximo de informações à disposição, tanto os pesquisadores como as autoridades públicas lidam com a pandemia "olhando para o retrovisor" devido a uma defasagem de cerca de 14 dias em relação aos registros, o que significa que limitar esses dados torna ainda mais difícil o enfrentamento à doença.

Fazer essa mudança justamente no momento em que diversos Estados e municípios iniciaram processos de reabertura dos negócios afeta a capacidade dos gestores locais de definir suas políticas de flexibilização das quarentenas, afirmou o pesquisador, acrescentando que essas medidas já estão sendo tomadas no Brasil antes de o país atingir o pico de casos.

"No momento em que se fala de flexibilização das medidas de distanciamento social, é fundamental ter informações confiáveis à disposição para que se possa tomar as decisões adequadas, lembrando que nós já estamos olhando para trás, de 10 a 14 dias, uma vez que há um atraso na notificação dos casos", afirmou. "A gente está dirigindo olhando pelo retrovisor, e agora é como se o retrovisor estivesse com vista parcial."

Antes de reduzir as informações divulgadas a casos e números nas 24 horas anteriores, o Ministério da Saúda já vinha diminuindo o acesso a informações.

No início da epidemia, a pasta divulgava os dados diários da Covid-19 por volta das 17h e concedia entrevista coletiva diariamente com o então ministro Luiz Henrique Mandetta e os principais secretários responsáveis pelo enfrentamento à doença.

Depois que Mandetta foi demitido por desavenças com o presidente Jair Bolsonaro quanto às estratégias para conter o novo coronavírus, principalmente devido à contrariedade do presidente ao isolamento social, o ministério passou a divulgação dos números para as 19h na gestão de Nelson Teich, com entrevistas coletivas quase diariamente.

No entanto, com a saída de Teich em 15 de maio, após menos de um mês no cargo --também devido a desavenças com Bolsonaro--, o Ministério da Saúde passou a atrasar rotineiramente a divulgação dos números e também deixou de realizar entrevistas diárias.

Por fim, o ministério passou a divulgação para as 22h, e sem os dados históricos. Questionado por jornalistas sobre o novo horário na sexta-feira, Bolsonaro, que já minimizou a Covid-19 chamando-a de "gripezinha", respondeu: "Acabou matéria no Jornal Nacional."

"O fato disso ser uma decisão da Presidência da República que o Ministério da Saúde está levando a ferro e fogo tem uma implicação para o país gravíssima", disse o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

"A disponibilização de dados confiáveis é absolutamente fundamental numa situação de pandemia como essa... No momento em que você deixa de fazer isso, e você cria todos os empecilhos e explicitamente o presidente fala uma coisa dessa, que é melhor não divulgar porque é melhor para os brasileiros, isso nos coloca em uma situação de um enorme risco", acrescentou.

O ministério informou em nota que está readequando sua plataforma de divulgação dos dados para "proporcionar uma informação sobre o cenário atual com uma abordagem técnica, porém mais simples e de fácil entendimento e acesso à população em geral".

O site em que a pasta divulga os dados da pandemia ficou fora do ar entre sexta-feira e sábado, para ser readequado às novas medidas do ministério.

O Brasil é o segundo país do mundo com mais casos de Covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos (1,9 milhão de casos), e o terceiro em termos de óbitos, atrás de EUA (110,3 mil) e Reino Unido (40,5 mil). No entanto, o país registra atualmente a maior aceleração de disseminação de casos no mundo, com números diários acima inclusive daqueles registrados nos EUA.

O Ministério da Saúde também informou no domingo que fará uma nova mudança na forma de divulgação dos dados da epidemia, passando a registrar os casos e óbitos na data da ocorrência, e não mais no dia de registro. A medida contraria o que é feito em todos os principais países do mundo.

"Uma coisa que a gente sabe é o seguinte: quando você começa uma medida, numa situação, você vai com ela até o fim. Você não fica trocando a régua, a trena no meio da medição que você está fazendo de uma área. Você vai mantendo a mesma -- depois você pode até corrigir... Então não tem sentido você, no meio, chegar e alterar", afirmou Lotufo sobre a nova metodologia.

Nesta segunda-feira, o chefe do programa de emergências da OMS, Mike Ryan, cobrou que o Brasil seja "consistente e transparente" nas informações sobre a epidemia.

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