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Prazo para produzir vacinas no Brasil pode ser "impossível"

4 ago 2020 - 14h53
(atualizado às 15h57)
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Em meio a uma corrida mundial por vacinas contra a covid-19, o Brasil se posicionou rapidamente para ter acesso a dois imunizantes e à transferência de tecnologia para produzi-los localmente, mas a projeção de que o País poderá fabricar do zero e distribuir vacinas até meados do próximo ano parece ser excessivamente otimista, na avaliação de especialistas ouvidos pela Reuters.

Enfermeira segura candidata a vacina da Sinovac antes de aplicação em voluntário no Instituto Emílio Ribas, em São Paulo
30/07/2020
REUTERS/Amanda Perobelli
Enfermeira segura candidata a vacina da Sinovac antes de aplicação em voluntário no Instituto Emílio Ribas, em São Paulo 30/07/2020 REUTERS/Amanda Perobelli
Foto: Reuters

Apesar da reconhecida capacidade brasileira em produção de vacinas - o País é praticamente autossuficiente na maior parte das vacinas usadas no Sistema Único de Saúde (SUS) - três especialistas, sendo dois ex-presidentes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e um ex-ministro da Saúde, afirmaram que, mesmo quando a tecnologia é conhecida, uma transferência nesse porte leva, na melhor das hipóteses, dois anos para ser feita. O mais comum, entre três e cinco anos.

A promessa do governo federal de investir quase R$ 2 bilhões para a produção nacional pode acelerar o processo, mas dificilmente o suficiente para alcançar o calendário divulgado pelas autoridades, disseram as fontes.

Com acordos separados negociados pelo Ministério da Saúde, com o laboratório britânico AstraZeneca, e pelo governo de São Paulo, com a chinesa Sinovac, o País deve obter o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) para finalizar localmente duas vacinas diferentes e aplicá-las na população já no início do ano que vem, caso se provem eficazes.

No entanto, a prometida produção local ainda no primeiro semestre, que daria independência ao País, pode não sair como anunciado.

"Isso é impossível", disse José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e pesquisador aposentado da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). "Produzir de que maneira? Todas as etapas tecnológicas no Brasil é impossível. Isso demora um período grande. Pode ser que se consiga acelerar, mas não tanto."

Tanto no Instituto Butantan, do governo de São Paulo, que fechou acordo para testar e produzir a vacina da Sinovac, e na Fiocruz, ligada ao governo federal, que assinou um pré-acordo para produzir a vacina da AstraZeneca com tecnologia desenvolvida pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, as estimativas de produção local foram fortemente aceleradas em relação ao cronograma normal.

Marco Krieger, vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, disse à Reuters que a intenção é tentar fazer essa transferência de tecnologia em até um ano. "O processo de transferência de tecnologia de uma vacina normalmente demora entre 5 e 10 anos, e a gente está procurando fazer isso em menos de um ano", disse à Reuters.

Já no Butantan, o diretor do Instituto, Dimas Covas, calcula estar produzindo a vacina integralmente entre 10 e 15 meses. "Quinze meses seria um prazo bem realista", afirmou.

Um ex-presidente da Anvisa que pediu anonimato pois tem envolvimento direto com o tema afirmou desconhecer processos de transferência de tecnologia em vacinas que tenham ocorrido tão rapidamente. Apesar de reconhecer que o momento é especial e possivelmente tenha uma concentração extraordinária de esforços e recursos, a avaliação é que o prazo não teria como ser encurtado dessa maneira.

"Se eles conseguirem envasar a vacina em um prazo curto já vai ser um grande passo. Não tem acordo de transferência de tecnologia que tenha durado menos de 5 anos", afirmou.

Questionados sobre essas previsões, o Ministério da Saúde afirmou que é cedo para confirmar qualquer uma delas. De acordo com a pasta, o andamento da produção no Brasil vai depender dos resultados dos testes da Fase 3 que ainda estão sendo feitos.

A Fiocruz, o governo de São Paulo e o Butantan não responderam a pedidos de comentários sobre as dúvidas relativas aos cronogramas levantadas pelos especialistas ouvidos pela Reuters.

Os dois acordos firmados pelo Brasil preveem a transferência de tecnologia para que, depois de receber uma remessa inicial do insumo farmacêutico para que a vacina seja finalizada no Brasil, o país passe a fabricar a vacina por contra própria desde o início do processo, com transferência total de tecnologia.

No caso da AstraZeneca, foi assinado um documento que dará base para um acordo ainda a ser finalizado entre a empresa e a Fiocruz prevendo a compra de 30 milhões de doses antecipadas da vacina, a um custo de 97 milhões de dólares, mesmo sob o risco de o resultado da Fase 3 de testes em humanos --a última antes do registro da vacina--, não ser o esperado. Com isso, o Brasil terá a prioridade na compra de mais 70 milhões de doses no caso de confirmação da eficácia e também irá adquirir a tecnologia.

O acordo do Butantan com a Sinovac segue outro modelo, mas que também inclui a transferência de tecnologia. O instituto, que já lidera os testes da terceira fase da vacina no Brasil, investirá 85 milhões de reais para realizá-los. Em troca, o Estado de São Paulo receberá 120 milhões de doses --o suficiente para imunizar 60 milhões de pessoas-- ainda neste ano, e essas doses já ficarão disponíveis para aplicação no país assim que a vacina for registrada.

Covas, do Instituto Butantan, afirma que o processo de transferência de tecnologia está em andamento "desde o primeiro momento" da parceira. "Quando foi assinado o acordo essas conversas já começaram", disse ele à Reuters.

Krieger, da Fiocruz, explica que a fundação também está iniciando as duas atividades paralelamente: a fase de preparação final das vacinas no Brasil e a transferência de tecnologia para produção local.

"Acho que é do interesse de todos fazer isso da forma mais célere possível, mas existem alguns gargalos que podem atrasar um pouco, precisamos alguns equipamentos novos, tem prazo de entrega, qualificações, certificações, então é bom a gente ter essa margem de segurança. Esses 100 milhões nos dariam um quantitativo pelo menos cobrindo o primeiro trimestre do ano de 2021, e a gente imagina que esse é o prazo que a gente precisa para disparar a nossa produção local", disse, citando as doses a serem finalizadas no país com IFA importado da AstraZeneca.

A velocidade com que o coronavírus se espalha pelo mundo e a quantidade de vítimas que a epidemia já fez --o Brasil deve alcançar os 100 mil mortos nos próximos dias-- justifica a pressa.

O ex-presidente da Anvisa Gonzalo Vecina Neto se mostrou mais otimista em relação ao prazo, mas mesmo assim calculou em dois anos o período para que se complete a transferência de tecnologia. Ressaltou, no entanto, que os dois laboratórios públicos têm capacidade de absorvê-las rapidamente.

"Transferência de tecnologia depende da capacidade de absorção dos laboratórios", afirmou.

O caso do Butantan é visto como menos complicado pois a vacina da Sinovac usa uma tecnologia, de vírus inativado, já dominada pelo instituto, enquanto a Fiocruz ainda não trabalha com a tecnologia usada no medicamento que está sendo desenvolvido pela AstraZeneca, a de vetor viral, e precisa inclusive adquirir novas máquinas.

Duas tecnologias

As duas vacinas estão na Fase 3 de pesquisa, em que milhares de voluntários recebem as doses para que se acompanhe os resultados no organismo, após apresentarem boa resposta imunológica, com sinais de que provocam o desenvolvimento de anticorpos, e segurança nas fases anteriores de testes. O que as difere é a tecnologia de produção.

A vacina chinesa é feita com o chamado vírus inativado, que ao ser inoculado não consegue se replicar, mas provoca a produção de anticorpos que defendem o organismo se a pessoa tiver contato com o vírus ativo. É a mesma tecnologia usada, por exemplo, para a vacina de Influenza B.

Já Oxford usa a engenharia genética ao colocar partes do coronavírus Sars-Covid-2 --que provoca a covid-19-- dentro de um adenovírus atenuado, um vírus mais simples, que causa sintomas como os de um resfriado em chimpanzés. As pequenas partes genéticas do novo coronavírus agregadas ao adenovírus não têm a capacidade de provocar a covid-19, mas provou até agora ser capaz de criar uma resposta imune no organismo.

"Existem várias pesquisas com tecnologia do vetor viral, mas não existe ainda no mundo uma vacina registrada que use essa tecnologia. É uma tecnologia que está avançando, nos últimos anos recebeu muitos investimentos por causa dos surtos de Sars e Mers, Zika e Ebola", disse Krieger, da Fiocruz.

"Para nós é uma plataforma que tem muito interesse, porque além dessa potencial vacina que os dados soam muito promissores --foram considerados, inclusive, pela OMS, como a vacina mais promissora até o momento-- a gente entende que pode ser uma plataforma de futuro. Podemos ter outros produtos também desenvolvidos, e isso nos interessa também."

Apesar da crise econômica e do déficit fiscal gigantesco, o Ministério da Saúde prometeu investir mais de 1,9 bilhão de reais para assegurar a produção nacional da vacina da AstraZeneca contra a covid-19, sendo 1,3 bilhão referente à encomenda tecnológica, que permitirá o recebimento do IFA e a transferência de tecnologia.

Cerca de 95 milhões de reais serão investidos em adaptações necessárias às áreas produtivas e de controle de qualidade do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) para a produção nacional após a transferência. Outros 522,1 milhões serão destinados para o processamento da vacina.

Depois de uma reunião com pesquisadores de Bio-Manguinhos, deputados da comissão externa da Câmara que acompanha as medidas contra a epidemia decidiram pedir ao governo uma medida provisória que garanta 2 bilhões de reais para o desenvolvimento da vacina.

Já o diretor do Butantan calcula em 130 milhões de reais o investimento necessário para produzir a vacina da Sinovac no Brasil. Os recursos não viriam do governo de São Paulo nem do próprio instituto, mas de doadores privados. O governo paulista afirma já ter obtido o compromisso de empresários para doar 96 milhões de reais para o Butantan.

"O Butantan está buscando já os financiadores, procurando doações, principalmente, de pessoas interessadas em ajudar, de empresas interessadas em ajudar e assim por diante", contou Dimas Covas.

"Todas as possibilidades"

Com investimentos e tecnologia, a aposta de especialistas ouvidos pela Reuters é que o Brasil possa ter em algum momento duas, ou mais, vacinas sendo produzidas no país, o que poderia permitir a imunização da maior parte da população.

"Provavelmente as duas vão funcionar, isso eu posso te dizer. É praticamente impossível não gerar um pouco de imunidade por algum tempo", afirmou Cristina Bonorino, membro do Comitê Científico da Sociedade Brasileira de Imunologia.

Uma das questões é o tempo dessa imunidade, qual o grau de eficácia e por quanto tempo ela irá funcionar. E se outras surgirem, melhores, qual o acesso que o Brasil terá.

Depois de relutar por algum tempo, dadas as críticas do presidente Jair Bolsonaro ao sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), o governo brasileiro decidiu em julho aderir ao Covax Facilities, instrumento que está sendo montado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pretende garantir preço e acesso às vacinas, à medida que os medicamentos comprovem sua eficácia.

Através do Covax, a OMS vem já negociando com os diversos laboratórios para garantir produto e preço e permitir uma distribuição mais igualitária. A intenção é evitar a guerra que se deu na disputa internacional por respiradores e equipamentos de proteção individual (EPIs) no início da epidemia.

"Estamos entrando em todas as possibilidades. A ideia é não ter todos os ovos na mesma cesta" disse uma fonte do ministério.

As disputas políticas entre Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), não afetam a produção de vacinas, de acordo com essa fonte, uma vez que o governo federal investe no Butantan e se a vacina da Sinovac funcionar, também poderá ser distribuída nacionalmente, como Doria também já afirmou por mais de uma vez.

Ainda assim, o presidente tende a alimentar a briga não apenas com São Paulo, mas com a China. Na noite de quinta-feira, ao tratar publicamente pela primeira vez das vacinas, fez questão de ressaltar que não estava falando da vacina chinesa, já que seus seguidores mais radicais acusam o país ter criado o novo coronavírus de propósito.

"Se fala muito da vacina da covid-19. Nós entramos naquele consórcio lá de Oxford. Pelo que tudo indica, vai dar certo e 100 milhões de unidades chegarão para nós. Não é daquele outro país não, tá ok, pessoal? É de Oxford aí", disse.

Além das vacinas da AstraZeneca e da Sinovac, o governo do Paraná anunciou em 28 de julho um acordo com a empresa farmacêutica chinesa Sinopharm para realização de testes de uma outra candidata no Brasil, com possível transferência futura de tecnologia.

Uma vacina produzida pela Rússia também poderá ser testada e produzida no Brasil, após contatos feitos por representantes do governo russo com o Butantan e o governo do Paraná.

O próprio Ministério da Saúde também já afirmou que negocia a possível compra da vacina em desenvolvimento pelo laboratório norte-americano Moderna, e também tem no radar a possível vacina da parceria Pfizer/BioNTech, que será testada no Brasil a partir deste mês. Nesses casos, no entanto, a compra não envolveria transferência de tecnologia.

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