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Polícia

RJ: jornalista da BBC descreve caos em tentativa de socorro a cinegrafista

13 fev 2014 - 20h23
(atualizado às 21h50)
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Hoje, fui ao funeral de um homem que eu não conhecia. Mas tudo o que ouvi e li sobre Santiago Andrade nos últimos dias me faz desejar ter conhecido e passado mais tempo na companhia dele.

Os poucos minutos nos quais nossos caminhos se cruzaram em uma praça no Rio de Janeiro na semana passada foram caóticos, confusos e, em última análise, fúteis. Por talvez uma hora e meia, eu fiquei com aquele pai de família de 49 anos de idade em um hospital no centro da cidade enquanto médicos lutavam para salvá-lo. Santiago Andrade não saiu do hospital com vida.

Faz exatamente uma semana desde que o cinegrafista da Rede Bandeirantes caiu com a explosão de um artefato, um tipo de sinalizador ou peça de fogos de artifício, atrás de sua cabeça enquanto ele cobria um dos protestos contra o governo no Rio de Janeiro.

Menos de quatro segundos depois, meu colega da BBC, Keith "Chuck" Tayman, e eu estávamos a seu lado. Antes de chegar ao Brasil há cerca de cinco meses, eu passei os últimos três anos baseado no Oriente Médio cobrindo, entre outros eventos, as quase sempre traumáticas revoltas árabes. No Egito, em Gaza e na Líbia, eu presenciei cenas chocantes, emocionalmente aflitivas e vi, com muita frequência, as terríveis consequências dos conflitos.

Então, quando ajoelhei ao lado do corpo de Santiago, não fiquei congelado ou em dúvida sobre o que deveria fazer, mesmo vendo seus ferimentos terríveis. A explosão deixou uma enorme ferida em sua cabeça, através da qual o sangue já começava a escorrer.

Todos os funcionários da BBC que trabalham em áreas de conflito passam por um treinamento chamado "hostile environment" (ambiente hostil) - cuja parte mais valiosa é, sem dúvida, a preparação para prestar primeiros socorros. Tendo trabalhado anteriormente como guia de expedições em montanhas, eu também já havia usado esse conhecimento em outras ocasiões.

Na falta de um kit de primeiros socorros ou de bandagens apropriadas, Chuck instintivamente retirou sua camiseta e a pressionou contra a ferida na cabeça de Santiago para estancar a hemorragia. Apesar de inconsciente, Santiago respirava pesadamente. Em meio ao caos, fizemos o melhor que podíamos para estabilizá-lo.

Eu já vi muitas vítimas de violência deixadas deitadas no chão enquanto policiais e transeuntes ficam imóveis, por relutância ou incapacidade de ajudar, durante aqueles que podem ser os momentos mais críticos para a sua sobrevivência.

Na hora em que a ajuda médica profissional chega, frequentemente, é muito tarde; a vítima pode ter morrido pela perda de sangue, insuficiência cardíaca ou simplesmente porque ninguém verificou se ela continuava respirando.

Marcelo Freixo comenta postura de advogado que tentou ligá-lo a manifestantes que mataram cinegrafista da Band:

Os ferimentos de Santiago eram tão graves que nós sabíamos que deveríamos levá-lo ao hospital imediatamente. Mas alguns policiais - talvez não percebendo a gravidade da situação - acabaram dificultando nossa passagem enquanto muitos manifestantes protestavam e gritavam culpando a polícia pelo ataque. Foi demonstrado, de forma quase inegável, que o artefato foi disparado por uma dupla de manifestantes que acabou sendo identificada.

Enquanto tratávamos de Santiago no chão, também tivemos que "controlar" a situação. Após alertar diversas vezes os policiais sobre a urgência do momento, carregamos cuidadosamente seu corpo, de 82 quilos, para a parte de trás de um carro de polícia e corremos para o hospital mais próximo.

O tempo pareceu uma eternidade, mas, desde o momento em que vi Santiago soltar sua câmera e cair no chão até a corrida contra o fluxo do tráfego pela principal avenida do Rio de Janeiro para o hospital, passaram-se apenas seis minutos.

Eu e Chuck esperávamos que tivesse sido tempo suficiente para ajudar a salvar a vida de Santiago Andrade.

Ameaça de violência

Sabendo que aquela provavelmente seria a última vez que veria seu pai com vida, Vanessa Andrade também passou bastante tempo ao lado de seu leito no hospital nesta semana. Escrevendo com o coração, mas com a consciência de alguém que quer dizer as coisas certas e relembrar momentos preciosos, a jovem de 29 anos falou sobre o pai e sua última "conversa" com ele.

"Ele me ensinou muitas coisas, que pessoas de origem humilde têm que trabalhar duas vezes mais duro para vencer na vida", disse Vanessa, que deu continuidade à vocação do pai como profissional de mídia.

Jurista critica projeto antiterrorismo: “não podemos ser tidos como otários”:

Em uma homenagem comovente, ela continuou: "Hoje, eu disse adeus, só eu e ele. Com minha cabeça em seu ombro, falamos de muitas coisas. Eu pedi perdão pelas minhas falhas... . Eu sei que ele está bem. Claro que ele está. E eu sou a continuação da vida dele".

Em uma sociedade frequentemente brutal e polarizada, muitos colegas descreveram Santiago como um homem grande e gentil que odiava violência e fazia todo o possível para evitar confrontos.

Durante seu velório e funeral lotados hoje no subúrbio do Rio de Janeiro, colegas da Band News e dezenas de outros jornalistas brasileiros relembraram um homem que trabalhou para minimizar as ameaças a profissionais de mídia.

Aqui na América Latina, onde jornalistas frequentemente correm o risco de se tornarem alvos, em vez de poderem operar como livres observadores independentes, o conceito de direitos legais para profissionais de mídia ainda não está enraizado.

De acordo com números divulgados recentemente, mais trabalhadores da imprensa foram mortos no Brasil do que em qualquer outro lugar na região, incluindo o México, onde repórteres são frequentemente intimidados e forçados a trabalhar de forma anônima.

"No Brasil, jornalistas trabalham sob uma ameaça generalizada de violência e grande operações repressivas da polícia", afirmou o 2014 World Press Freedom Index (Índice de Liberdade de Imprensa no Mundo), que foi divulgado nesta semana.

É uma curva de aprendizado para jornalistas também. Permanecer como observadores imparciais de eventos complicados e traumáticos é a melhor maneira de se conseguir enxergar o cenário como um todo.

Infelizmente, nos dias após a morte de Santiago, partes da imprensa brasileira correm perigo de serem usadas e manipuladas por forças políticas para demonizar o movimento de protestos como um todo, não apenas os poucos sem consciência que estão empenhados em ações de violência e confronto.

Esses têm sido dias perigosos porém fascinantes para ser um jornalista no Brasil - um assunto que eu teria adorado conversar com um homem comprometido com seu trabalho e sua família.

Atingido em protesto, cinegrafista tem morte cerebral
O cinegrafista Santiago Andrade foi atingido na cabeça por um rojão durante a cobertura de um protesto contra o aumento das passagens de ônibus no Centro do Rio de Janeiro, no dia 6 de fevereiro. Além dele, outras seis pessoas ficaram feridas na mesma manifestação.

De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, o cinegrafista chegou em coma ao hospital municipal Souza Aguiar. Ele sofreu afundamento do crânio, perdeu parte da orelha esquerda e passou por cirurgia no setor de neurologia. A morte encefálica foi informada pela secretaria no início da tarde de 10 de fevereiro, após ser diagnosticada pela equipe de neurocirurgia do hospital onde ele estava internado no Centro de Terapia Intensiva.

O tatuador Fábio Raposo confessou à polícia ter participado da explosão do rojão que atingiu Santiago. Ele foi preso na manhã de domingo em cumprimento a um mandado de prisão temporária expedido pela Justiça. O delegado Maurício Luciano, titular da 17ª Delegacia de Polícia (São Cristóvão) e responsável pelas investigações, disse que Fábio já foi indiciado por tentativa de homicídio qualificado e crime de explosão e que a pena pode chegar a 35 anos de reclusão.

Raposo ajudou a polícia a reconhecer um segundo responsável pelo disparo do artefato que causou a morte do cinegrafista. O tatuador, preso no Complexo Penitenciário de Gericinó, na zona oeste do Rio de Janeiro, afirmou, de acordo com o relato do delegado, que “eles se encontravam em manifestações" e que "esse rapaz tem perfil violento”.

A Polícia Civil do Rio de Janeiro divulgou, na manhã do dia 11, uma foto do suspeito de ter acendido o rojão que atingiu Santiago Andrade. Caio Silva de Souza, 23 anos, tem duas passagens pela polícia e era considerado foragido desde que foi expedido um mandado de prisão temporária em seu nome. Fábio Raposo, que passou o rojão, reconheceu o autor do disparo a partir da imagem levada pelo delegado.

Procurado por homicídio doloso qualificado – quando há intenção de matar – por uso de artefato explosivo e pelo crime de explosão, o suspeito foi preso na madrugada de 12 de fevereiro em uma pousada na cidade de Feira de Santana, na Bahia. De acordo com o advogado Jonas Tadeu Nunes, que também defende Fábio Raposo, Caio Silva de Souza seguia em direção ao Ceará, para a casa de um avô, mas foi convencido a se entregar. Ele não reagiu ao ser preso.

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