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Investigada nos EUA e no Brasil, Philips demitiu delator

21 ago 2019 - 09h33
(atualizado às 10h19)
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A gigante de equipamentos de saúde Philips foi alertada sobre vendas suspeitas ao governo do Brasil, e não as impediu, quase uma década antes de um suposto esquema de subornos ser exposto nas operações brasileiras da empresa em 2018, como a Reuters descobriu.

Alegações de má conduta chegaram até os escalões mais altos do conglomerado holandês ainda em 2010, segundo autos registrados por procuradores federais, documentos internos da empresa e entrevistas da Reuters com um ex-gerente de uma subsidiária da Philips no Brasil que diz ter alertado seus superiores do suposto esquema e ter sido demitido mais tarde.

O ex-funcionário, José Israel Masiero Filho, ex-executivo da cadeia de suprimento da Dixtal Biomédica Indústria e Comércio Ltda., conversou longamente com a Reuters em sua primeira entrevista à mídia estrangeira.

Ele disse que, em janeiro de 2010, flagrou irregularidades em três acordos de venda de equipamentos da Philips e da Dixtal a um intermediário brasileiro obscuro que havia conseguido grandes contratos com o Ministério da Saúde do Brasil. Masiero disse ter suspeitado que propinas foram usadas para fechar o negócio com o governo, alegações hoje no cerne de um inquérito de corrupção no Brasil, como provam os autos.

Imediatamente, Masiero mandou um e-mail a um canal interno da Philips para relatar suas suspeitas, encontrou-se pouco depois com o principal executivo de compliance da companhia e alertou ao menos três outros executivos de alto escalão durante o ano de 2010. Entre eles estava Steve Rusckowski, ex-presidente-executivo da Philips Healthcare, a maior divisão da empresa.

Os alertas de Masiero foram detalhados em e-mails, memorandos internos e autos vistos pela Reuters. "A Philips deveria considerar que, ao aprovar e aceitar estas vendas, será envolvida em atividades ilegais se descoberta", escreveu Masiero a Rusckowski em um e-mail de 14 de outubro de 2010.

Ainda assim, a Koninklijke Philips, como a empresa é conhecida formalmente, continuou a vender ao intermediário brasileiro para cumprir os contratos com o Ministério da Saúde, como apontam faturas. Rusckowski, que atuou como presidente-executivo da Philips Healthcare até abril de 2012, não respondeu a pedidos de comentários. Hoje ele é CEO da Quest Diagnostics, com sede em Nova Jersey, nos Estados Unidos.

Em um comunicado enviado por e-mail à Reuters, a Philips disse estar cooperando com as autoridades brasileiras que investigam a indústria de equipamentos médicos do país.

A empresa disse ter iniciado uma investigação interna em 2010 em reação a uma "denúncia anônima", mas que "não identificou indícios diretos de irregularidade", porém endureceu seus processos internos de controle no Brasil. A Philips não quis falar sobre Masiero ou as circunstâncias de sua demissão. O Ministério da Saúde não respondeu a pedidos de comentário.

Saúde na mira

Atualmente, a Philips é um dos alvos de uma investigação crescente sobre a corrupção em contratos médicos no Brasil, que autoridades dizem ainda estar nos estágios iniciais e que provocou inquéritos adicionais. Masiero está cooperando com os procuradores brasileiros.

Eles alegam que a Philips e outras multinacionais conspiraram com intermediários para pagar subornos por contratos públicos, sobrecarregando o sistema de saúde do Brasil com preços inflados para recuperar o gasto com propinas.

No ano passado, vinte e quatro pessoas foram acusadas por sua ligação com o suposto esquema, e hoje todas estão sendo julgadas no Rio de Janeiro. A alemã Siemens e as norte-americanas Johnson & Johnson, General Electric e Stryker, todas grandes fabricantes de equipamentos médicos, foram implicadas no inquérito. Johnson & Johnson, Siemens e GE não quiseram comentar.

Elas já haviam negado irregularidades e dito que estão cooperando com a investigação. A Stryker disse estar comprometida a trabalhar de maneira ética e que não pode fazer mais comentários. Nos EUA, o FBI, o Departamento de Justiça e a Securities and Exchange Commission (SEC, a CVM norte-americana) iniciaram suas próprias investigações sobre a suspeita de corrupção na venda de equipamentos médicos no Brasil e também na China, segundo pessoas a par do assunto.

O delator Masiero disse estar cooperando com todas estas agências, uma afirmação confirmada em e-mails vistos pela Reuters. O FBI, o Departamento de Justiça e a SEC não quiseram comentar. A Philips disse à Reuters que está "analisando" solicitações do Departamento de Justiça e da SEC relacionadas ao inquérito do Brasil.

Intermediário misterioso

Hoje com 52 anos, Masiero foi contratado em 2006 como gerente de exportações da Dixtal, onde chegou a ser o principal executivo de logística e da cadeia de suprimento da empresa de equipamentos médicos sediada em São Paulo no início de 2009. A Philips comprou a Dixtal em 2008.

No início de 2010, Masiero notou o que considerou irregularidades em três grandes contratos concedidos pelo Ministério da Saúde. Os acordos, um deles para 750 desfibriladores da Philips e os outros para um total de 3.972 monitores de sinais vitais da Dixtal, tinham um valor combinado de 68,9 milhões de reais, segundo registros governamentais.

Masiero disse ter estranhado que a Philips não tenha competido diretamente por uma fatia tão grande do negócio. Nem a Philips nem a Dixtal apresentaram propostas, de acordo com registros governamentais de propostas de orçamento vistos pela Reuters.

Ao invés disso, os contratos foram dados à Rizzi Comércio e Representações Ltda., uma empresa brasileira de suprimentos médicos pouco conhecida. Encarregado de encaminhar os equipamentos à Rizzi Comércio, Masiero ficou surpreso ao descobrir que seu endereço de cobrança era uma pequena fachada de loja com a tinta descascando localizada em um bairro decadente de São Paulo.

"Foi um alerta vermelho imediato para mim", disse Masiero à Reuters.

Além disso, o Ministério da Saúde estava pagando bem acima dos preços de mercado pelos equipamentos, disse Masiero, algo incomum para um cliente grande com poder aquisitivo. Em 12 de fevereiro de 2010, por exemplo, Masiero alegadamente recebeu um e-mail de um executivo de vendas da Philips, Frederik Knudsen, orientando-o a entregar o primeiro lote de 60 desfibriladores à Rizzi Comércio, que adicionou 67% ao seu preço, de acordo com a correspondência incluída nos autos.

"O valor que deveria estar na fatura é o que foi combinado com o Ministério da Saúde" --R$16.700 por unidade-- "e não aquele pelo qual o vendemos à Rizzi (R$9.991)", segundo o e-mail alegadamente de Knudsen visto pela Reuters.

Procuradores dizem que a Philips e a Rizzi Comércio conspiraram para disfarçar e reaver o custo dos subornos inflando os preços --e com isso defraudando os contribuintes brasileiros.

Knudsen, que a Philips confirmou ainda trabalhar na companhia, é um dos que estão em julgamento no Rio. Outro é Daurio Speranzini, que comandou as operações da Philips Healthcare na América Latina durante sete anos, foi para a GE em 2011 e deixou esta última em dezembro passado. Em agosto passado, ambos foram acusados de extorsão e fraude.

Os advogados de Knudsen não responderam a pedidos de comentário. Em uma defesa por escrito apresentada ao tribunal, eles disseram que Knudsen não estabeleceu os preços da Philips e que é inocente. Em outro documento legal submetido à corte, eles também questionaram a veracidade dos e-mails que seu cliente alegadamente enviou a Masiero.

Os advogados de Speranzini responderam às perguntas com sua defesa por escrito, que argumenta que ele desconhecia o suposto esquema de subornos ou os alertas de Masiero.

Os irmãos Wlademir e Adalberto Rizzi, proprietários da Rizzi Comércio, também estão em julgamento por extorsão e fraude. Sua advogada, que não respondeu a pedidos de comentários, disse nos autos que seus clientes não se envolveram em atividades ilegais.

Acionado o alarme

Apreensivo com os acordos com a Rizzi Comércio, Masiero notificou a equipe de compliance global da Philips em Amsterdã em 20 de janeiro de 2010 por meio de um e-mail de comunicação interna. A Philips enviou Caroline Visser, então chefe de compliance global da Philips, ao Brasil para se encontrar com Masiero em março de 2010. Ela prometeu uma investigação rápida, de acordo com e-mails que os dois trocaram.

Dois meses depois, Masiero foi transferido da Dixtal para um cargo de logística da Philips em São Paulo, o que ele considerou um rebaixamento e um esforço para silenciá-lo --e as remessas continuaram, como mostraram as faturas.

Frustrado, em 14 de outubro de 2010 Masiero enviou um e-mail a Rusckowski, chefe da divisão de saúde da Philips. Masiero expressou preocupações sobre a Rizzi Comércio e o uso de um intermediário desconhecido, a Moses Trading American, para a compra de desfibriladores Philips fabricados nos EUA em seu nome para exportação para o Brasil.

Muito mais típico, disse Masiero à Reuters, seria a Philips vender diretamente à Rizzi. A desconfiança de Masiero só aumentou quando ele descobriu que o endereço da Moses Trading American constante das faturas da Philips era de uma casa particular em um campo de golfe no subúrbio de Phoenix. "A operação de vendas da Moses Trading é claramente suspeita", escreveu Masiero a Rusckowski.

Segundo e-mails vistos pela Reuters, Rusckowski encaminhou a mensagem de Masiero a Clement Revetti, Jr., principal executivo legal da Philips Healthcare. Revetti agradeceu Masiero e lhe pediu para não voltar a contatar o CEO. Masiero contrariou esta ordem, e em 9 de novembro de 2010 voltou a mandar um e-mail a Rusckowski e Revetti sobre suas desconfianças.

Em 4 de março de 2011, Masiero disse que debateu suas suspeitas mais uma vez com Caroline Visser em pessoa em São Paulo. Ele foi demitido naquele mesmo dia, e disse que não recebeu nenhuma justificativa para a demissão.

Documentos exigidos pelas leis trabalhistas brasileiras mostram que a Philips demitiu Masiero "sem justa causa", o que significa que a empresa não alegou problemas de desempenho.

Caroline e Revetti não responderam a pedidos de comentário. Quanto à Moses Trading American, procuradores brasileiros dizem que a operação é administrada por um peruano chamado Oscar Moses, que estão investigando por sua ligação com uma série de acordos de equipamentos médicos supostamente fraudulentos no Brasil.

Moses, que não foi acusado de nenhum crime, não respondeu a pedidos de comentário enviados ao seus perfis de Linkedin e Facebook.

Conversando com procuradores

Desanimado após a demissão, Masiero desistiu do assunto -- até 2014, quando o Brasil foi engolido por um escândalo de corrupção centrado na Petrobras, a Lava Jato, que derrubou líderes dos escalões mais altos do empresariado e da política.

Masiero entrou em contato com procuradores federais.

"Suas informações foram essenciais para nos ajudar a desmontar este esquema", disse Marisa Ferrari, uma das principais procuradoras do caso.

Enquanto isso, Masiero continua desempregado. Ele disse que está em uma lista negra no Brasil, e recentemente ele e a família se mudaram para um país que ele preferiu não revelar.

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