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Governo acerta na direção, mas atraso nas medidas contra coronavírus aumenta riscos, dizem economistas

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que, enquanto medidas de socorro emergencial anunciadas e aprovadas pelo Congresso não forem colocadas em prática, milhares de pessoas seguirão desprotegidas, mais de um mês depois após primeiro caso de covid-19 no Brasil.

2 abr 2020 - 15h04
(atualizado às 15h13)
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Em emergências como a atual, o tempo da ação é tão importante quanto o teor das ações, alertam os economistas
Em emergências como a atual, o tempo da ação é tão importante quanto o teor das ações, alertam os economistas
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Embora tenha anunciado medidas econômicas que parecem estar na direção correta para amenizar os efeitos da pandemia do novo coronavírus sobre a economia e a renda da população, a lentidão do governo do presidente Jair Bolsonaro para transformar as intenções em realidade tem despertado grande preocupação entre economistas de diversas especialidades consultados pela BBC News Brasil.

O alerta é que, enquanto medidas de socorro emergencial já anunciadas e até aprovadas pelo Congresso não chegam ao bolso dos brasileiros - como a renda básica emergencial de R$ 600, votada por iniciativa do próprio Congresso mas que só deve começar a ser paga no dia 16 de abril -, milhares de pessoas continuam desprotegidas sem renda e sem condições básicas de sobrevivência, mais de um mês depois de o primeiro caso de covid-19 ser confirmado no Brasil.

Em emergências como a atual, o tempo da ação é tão importante quanto o teor das ações, alertam os economistas, tanto para a saúde quanto para o PIB.

Quanto mais as famílias se aprofundarem na situação de pobreza nos primeiros meses da pandemia, mais aumenta tanto o risco de mortes quanto a dificuldade para recuperar a economia no futuro, quando a pandemia passar.

Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, diz que a falta de clareza e de concretude dos anúncios do governo contra o coronavírus tem tornado mais difícil a tarefa de medir e analisar o pacote de medidas relacionados à pandemia, sua especialidade à frente da instituição.

"O foco do IFI tem sido o de analisar as medidas fiscais mais concretas e os anúncios que são mais claros, porque alguns não são", afirma.

"O que mais me preocupa neste momento é a execução e a concretude dessas coisas. Um exemplo: o programa que foi aprovado pelo Senado, dos R$ 600, até agora não saiu do papel."

Na avaliação dele, os técnicos e o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, parecem apreensivos com a chamada "regra de ouro", e enquanto isso a sociedade espera. A referência é à regra que limita o aumento de gastos públicos.

"Mas não há nenhum motivo para que essa Medida Provisória não tenha sido feita até agora", explica Salto, um dos mais renomados fiscalistas do país, como são chamados os economistas para quem o equilíbrio e transparência das contas públicas são prioridades.

Salto é autor, em parceria com o secretário do Tesouro do governo Bolsonaro, Mansueto Almeida, do livro Finanças Públicas, da Contabilidade Criativa ao Resgate da Credibilidade, laureado pelo prêmio Jabuti.

"Meu alerta é: essa demora é alarmante. Nós estamos falando de pessoas que estão precisando de dinheiro para comer. De várias Santas Casas de diversos municípios que não têm UTI. Está faltando uma coordenação central."

Gil Castelo Branco, da ONG Contas Abertas, concorda que a demora é preocupante e não tem nenhum embasamento técnico, já que a própria Lei de Responsabilidade Fiscal prevê que, em caso de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, é dispensado o cumprimento de metas fiscais.

"A burocracia e a cautela excessiva dos servidores - com receio de serem punidos por atos que possam ser questionados posteriormente - têm contribuído para a lentidão. A LRF e a Constituição, no meu entender, já forneciam amparo legal para as medidas emergenciais."

Regras não justificam demora

Governo anunciou a medida provisória que permitirá a redução da jornada de trabalho com redução de salário
Governo anunciou a medida provisória que permitirá a redução da jornada de trabalho com redução de salário
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Mais cedo, nesta quinta-feira (02/04), Bolsonaro justificou o motivo do atraso para publicação no Diário Oficial da União da sanção ao Projeto de Lei que cria o auxílio emergencial de R$ 600 a trabalhadores afetados pela pandemia do coronavírus.

Segundo o presidente, "a burocracia é enorme" e qualquer erro por parte dele poderia resultar em crime de responsabilidade.

A explicação de Bolsonaro é parecida com o que vem argumentando o governo. Na terça-feira (31), Paulo Guedes foi alvo de críticas ao afirmar, em entrevista coletiva, que faltava concluir o trâmite "jurídico e político" para viabilizar os pagamentos.

Na argumentação do ministro, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) deveria alterar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que impõe limites para os gastos públicos.

Mas os fiscalistas são unânimes: situações de emergência são previstas na Constituição, e o governo precisa acelerar a viabilização dessas medidas.

"Para viabilizar o programa não precisa de PEC: você precisa de uma Medida Provisória, com crédito extraordinário, e pode condicionar a aprovação de um Projeto de Lei enviado pelo Executivo para rompimento da regra de ouro", explica Salto.

O próprio presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, criticou a intenção do governo de iniciar os pagamentos dos R$ 600 só no dia 16 de abril. "Se é um apoio emergencial, 16 de abril não parece tão emergencial para os brasileiros que estão precisando", disse Maia.

O que o governo anunciou até agora?

Segundo o ministro da Economia, as ações da área econômica para reduzir os danos provocados pela crise do coronavírus totalizam até agora um valor estimado em R$ 700 bilhões, entre antecipações de recursos, liberação de linhas de crédito e aumento de gastos públicos.

Entre as medidas anunciadas no "pacote" contra o coronavírus, estão a liberação de R$ 200 bilhões de compulsório (dinheiro que os bancos são obrigados a deixar depositado no Banco Central), de R$ 100 bilhões da Caixa Econômica Federal e de R$ 50 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Também foram anunciados novos recursos para o Ministério da Saúde e transferências para Estados e municípios.

Na quarta-feira (01), o governo anunciou um programa permitindo às empresas redução (por até três meses) ou suspensão (por até dois meses) dos salários dos trabalhadores durante a crise gerada pela pandemia do novo coronavírus.

Uma Medida Provisória será enviada ao Congresso com as regras, segundo o anúncio. A perda salarial será maior quanto maiores forem os salários originais. "Na faixa (de quem recebe hoje) até três salários mínimos, há muito pouca redução salarial", disse o secretário especial de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco Leal.

O objetivo do programa, segundo o governo, é evitar um grande número de demissões em um momento em que as empresas estão tendo forte redução dos seus negócios. Isso é reflexo do impacto do novo coronavírus na economia, já que as medidas de enfrentamento da doença levaram ao fechamento do comércio e à quarentena de parte de população.

Qual a fatia do PIB aplicada contra a pandemia?

Mas o valor total das medidas anunciadas até o momento contra o coronavírus, pondera Salto, não está claro. Ele destaca que, nesse montante de dinheiro contabilizado pelo ministro, é preciso separar bem é dinheiro injetado contra o coronavírus do que eram pagamentos previstos pelo governo, que serão apenas antecipados, como as duas parcelas do 13º salário de aposentados e pensionistas do INSS, por exemplo, e o pagamento do abono salarial do PIS/Pasep, que é pago para trabalhadores que receberam até dois salários mínimos por mês por empregos com carteira assinada.

"De uma maneira geral, as medidas do Banco Central, do BNDES, dos bancos públicos, elas estão na direção certa. Acho que o Banco Central é o que está agindo da melhor forma nessa crise, pela clareza das medidas e pela acurácia dos anúncios. Os do Guedes são muito aleatórios, ele vai somando os números na hora", critica.

"Dá a impressão de que o governo está aprendendo a governar enquanto a crise está acontecendo. As pessoas são preparadas, mas está faltando conhecer como funciona Brasília."

Salto lembra que o próprio benefício de R$ 600, aprovado em formato de Projeto de Lei, era inicialmente planejado para ser uma Medida Provisória, que nunca saiu. "Demorou, aí o Rodrigo Maia resolveu fazer um PL", diz, referindo-se ao projeto que Maia colocou para votação a partir do debate e sugestões de técnicos e economistas. Inicialmente, a proposta de Guedes de reforço na renda para informais era de R$ 200 mensais.

Por que o reforço do Bolsa Família não veio?

"Realmente a gente ainda não viu nenhuma medida na área social para tentar atenuar os efeitos da crise. Então, estamos esperando alguma medida para tentar salvar as pessoas, principalmente as que estão no trabalho informal e por conta própria, e que vão ficar sem ter receita", afirma o economista Naercio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas (CPP) do Insper, Ph.D. em Economia pela University of London.

Menezes Filho destaca que a crise do coronavírus tende a ser bem pior que a de outras depressões já observadas no país. Isso porque, diferentemente do que ocorreu em outros períodos em que a economia encolheu, desta vez a massa de trabalhadores que ficarão desempregados não poderá recorrer aos 'bicos" e à informalidade para substituir a renda perdida, em razão das medidas de quarentena e distanciamento social.

"Geralmente as pessoas são demitidas na sua ocupação principal e vão trabalhar nos setor de serviços informal. Iam fazer uma barraca na rua, pedir dinheiro na rua. E agora tem um grande contingente de pessoas trabalhando até em bares, comércio informal, e elas não vão poder fazer mais isso, porque não tem ninguém (consumindo)."

Desempregados terão dificuldade de recorrer aos 'bicos' e à informalidade para substituir renda perdida
Desempregados terão dificuldade de recorrer aos 'bicos' e à informalidade para substituir renda perdida
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Outro anúncio considerado urgente e que ainda não foi pago é a ampliação de R$ 3,1 bilhões no orçamento do Bolsa Família, o que vai permitir o ingresso de 1,2 milhão de famílias no programa.

O número parece insuficiente para atender à demanda criada pela pandemia, avalia Menezes, já que, em fevereiro, havia 1,5 milhão de famílias com direito ao benefício esperando na fila para serem atendidas, segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo.

"É muito importante zerar essa fila assim que possível. Houve anúncio da intenção, mas a medida em si ainda não foi implementada mesmo. A gente não sabe o que pode acontecer a partir daí, pode ter um impacto muito grande no desenvolvimento das crianças que estão em situação de pobreza", alerta.

PEC do Rodrigo Maia

O presidente da Câmara dos Deputados afirmou esta semana ao portal G1, da Globo, que a Casa deve votar ainda nesta semana a proposta de emenda à Constituição (PEC) que cria um "orçamento paralelo", chamado de "orçamento de guerra", focado exclusivamente na destinação de recursos para as medidas de combate ao coronavírus.

A versão mais recente da PEC anunciada por Rodrigo Maia, segundo o G1, diz que será criado um Comitê de Gestão da Crise, definido em um decreto do presidente da República.

"Acho essa PEC boa por criar um comitê central que cria todas essas ações que vão ter que ser financiadas pelo Estado, dívida pública. Quem não aceitou isso ainda tem que aceitar, porque dói menos", avalia Salto.

"Não pode ter purismo de achar que agora é hora de preservar o déficit primário, algo assim. O Congresso autorizou, até o Supremo. Não adianta ficar fazendo preciosismo com regra fiscal. Você tem que fazer um gasto grande, focalizado nas áreas de combate à crise, que são saúde, mitigação dos efeitos da crise sobre a renda dos mais pobres, e ajuda para as empresas para preservar emprego. E tem que garantir, aí sim entra a responsabilidade fiscal, que seja temporário. Não pode ficar usando esse espaço para fazer gasto permanente."

Mais ou menos que outros países?

Em entrevista coletiva esta semana, Guedes afirmou sobre as medidas que, "do ponto de vista do déficit primário, estamos gastando bem mais que qualquer país da América Latina". Mas, para os analistas consultados pela BBC News Brasil, ainda é cedo para saber se tal afirmação está correta.

Reportagem da BBC do dia 24 de março aponta que, segundo levantamento do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV), feito pelo economista Manoel Pires, as medidas anunciadas pelo governo de Jair Bolsonaro para conter o impacto do coronavírus no Brasil estão "muito abaixo do que foi anunciado em outros países".

Na estimativa de Pires, as iniciativas anunciadas até o momento pelo governo federal somam cerca de 4% do PIB do país.

Já na Alemanha, os gastos do governo para enfrentar a crise do coronavírus atingiram 37% do PIB na segunda-feira (23/03), com o anúncio de mais um pacote de 800 bilhões de euros (cerca de R$ 4,4 trilhões). Em países como Reino Unido e Espanha, as ações dos governos chegam a 17% do PIB, aponta ainda o levantamento da FGV. Nos Estados Unidos, por sua vez, os valores discutidos chegam a 6,3% do PIB, mas há uma negociação em andamento no Congresso para elevar o percentual para 11,3%.

O próprio Guedes tem variado suas estimativas entre 4,8% a 5% do PIB, incluindo todas as intenções e anúncios ainda não concretizados.

Tanto Salto quanto Castelo Branco são categóricos em afirmar que, até agora, não dá para comparar tal percentual com precisão.

"Primeiro, você não pode somar banana com laranja. Tem coisa que é crédito, tem coisa que é medida do Banco Central, e tem coisa que é gasto. E a outra é que algumas medidas estão apenas no discurso, ainda não foram concretizadas. Dá um certo receio de somar isso e depois não se verificar", conclui Salto.

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