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'Eles entraram na minha casa e mataram meu sobrinho': família de menino morto em ação da polícia no Ceará busca justiça

Secretaria de Segurança Pública do Estado diz que investiga o caso e não informa a razão da ação policial que invadiu a casa da família.

8 jul 2020 - 17h49
(atualizado às 17h58)
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"Mizael (foto) nunca nos deu trabalho, era um menino que costumava brincar pelas galerias da escola", lamenta o diretor do colégio, Eudes dos Anjos
"Mizael (foto) nunca nos deu trabalho, era um menino que costumava brincar pelas galerias da escola", lamenta o diretor do colégio, Eudes dos Anjos
Foto: Arquivo Pessoal / BBC News Brasil

Aos 13 anos, Mizael Fernandes, morador de Chorozinho, interior do Ceará, tinha o sonho de correr vaquejada. Na madrugada do dia 1 de julho, ele foi morto enquanto dormia na casa da tia, durante uma ação da Polícia Militar do Ceará, que invadiu a casa e, com um disparo, atingiu o garoto logo abaixo do peito, o que causou a falência múltipla dos órgãos de Mizael.

A Secretaria de Segurança Pública do Estado diz que investiga o caso. Não informa a razão da ação policial que invadiu a casa da família, e confirma que Mizael não tinha antecedentes criminais. A família diz que os policiais alteraram a cena do crime para dificultar a investigação.

A família de Mizael segue na luta por justiça e esclarecimentos para a sua morte. Além da dor da perda e o silêncio por parte da Secretaria de Segurança Pública do Estado, a família teme ameaças. Segundo tia do garoto, Lizangela Rodrigues, ao todo três policiais entram em sua casa naquela madrugada, enquanto outros esperaram do lado de fora.

"Eles entraram na minha casa, não me disseram o motivo e levaram, no máximo, 10 minutos para matar meu sobrinho, e mais 40 minutos para limpar as manchas de sangue do quarto onde ele dormia. Enquanto isso, armas grandes eram apontadas para o nosso rosto e no fim disseram que encontraram uma arma, que sequer nos mostraram, e a qual ninguém tem lá casa", diz Lizangela.

O governador cearense, Camilo Santana (PT), determinou uma ''imediata, rigorosa e isenta investigação'', e os policiais envolvidos foram afastados provisoriamente. Foi aberto um Inquérito Policial Militar (IPM) - com a finalidade de apurar a conduta dos militares envolvidos na ocorrência -, mas, até o momento o afastamento destes agentes, assim como a entrega de suas armas e credenciais, não foram publicados em Diário Oficial até esta quarta-feira.

A morte do menino de 13 anos, que gostava de correr e jogar bola, causou comoção no pequeno distrito de Triângulo e região. Com notas regulares e sem problemas disciplinares, a família conta que Mizael nunca teve dificuldades na escola. Estava no 8º ano do ensino fundamental, na Escola Luís Liberato de Carvalho, localizada no distrito de Patos dos Liberatos, e agora iria retomar as atividades escolares de maneira remota, devido à pandemia de covid-19.

O governador Camilo Santana (PT) prometeu ''imediata, rigorosa e isenta investigação'', e os policiais afastados provisoriamente
O governador Camilo Santana (PT) prometeu ''imediata, rigorosa e isenta investigação'', e os policiais afastados provisoriamente
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil / BBC News Brasil

"Ele estudava conosco havia 3 anos e nunca nos deu trabalho, era um menino que costumava brincar pelas galerias da escola, que passava com tranquilidade (nas provas). Ele foi um dos alunos que tinha começado a fazer as atividades à distância, mas que agora não iremos mais rever", lamenta o diretor do colégio, Eudes dos Anjos, 39 anos.

A violência policial no Ceará fez 78 vítimas até maio deste ano, segundo os dados mais recentes da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) - mais ate do que no mesmo período do ano passado (73). Não são disponibilizados os perfis das vítimas, nem quantas delas foram alvo de erro ou despreparo policial.

"Esses casos do tipo do Mizael têm se intensificado a cada dia no Estado, e não só nas periferias, mas também no interior. E nos preocupa, pois existe aí uma violência praticada pelo próprio Estado com a suposta alegação de combate às facções'', critica a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Estado, Mariana Lobo. ''O que se observa é, muitas vezes, uma entrada violenta da polícia nas periferias e nos bairros com menor índice de desenvolvimento social".

Segundo declarações da família, logo após o homicídio, o corpo do menino foi levado ao hospital pelos agentes da polícia, que limparam todo o quarto, retiraram as marcas de sangue e levaram com eles também o lençol, travesseiro e celular do garoto. Caso esta ação seja confirmada pela perícia, pode ser configurada como crime de fraude processual, conforme consta no artigo 347 do Código Penal.

Devido à possibilidade de ameaças, a Defensoria Pública do Estado (DPE) ,que tem feito o acompanhamento jurídico da família, está prestando assistência por meio do programa Rede Acolhe e Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas.

O caso de Mizael está sob responsabilidade da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança do Estado, e a investigação realizada pela Delegacia de Assuntos Internos (DAI). Em nota, o órgão informou que diligências estão sendo realizadas a fim de apurar o ocorrido. Mas que por se tratar de investigação de caráter sigiloso, não é possível dar detalhes sobre o andamento dos trabalhos. A CGD também determinou a instauração de procedimento administrativo disciplinar.

O integrante do Observatório de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará (UFC) e um dos organizadores da Associação de Familiares de Vítimas da Violência Policial, Rafael Silva, alerta para a importância da mobilização social nestes casos, como forma de pressionar por apuração e punição dos envolvidos, e consequentemente as indenizações.

Silva destaca que dos quatro casos acompanhados pela Associação, de 2014 até hoje, em todos os policiais foram absolvidos na Justiça comum por falta de provas, embora tenham sido afastados ou até expulsos da corporação.

Garoto de 13 anos foi assassinado enquanto durmia em uma ação da polícia Militar do Estado, que invadiu a casa da família
Garoto de 13 anos foi assassinado enquanto durmia em uma ação da polícia Militar do Estado, que invadiu a casa da família
Foto: Agência Brasil / BBC News Brasil

Dados enviados pela CGD apontam que neste ano estão sendo investigados no Estado 14 casos de intervenção policial envolvendo morte. Em 2019, de abril a dezembro, 62 procedimentos foram registrados.

O Laboratório de Estados da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV-UFC), mostra preocupação não só com o aumento dos números de mortes por intervenção policial, mas quanto à formação desses policiais. O coordenador sênior do Laboratório, César Barreira, enxergou despreparo na ação que resultou na morte do garoto Mizael.

"Temos que romper a lógica de que o policial trabalha com bandido. Policial trabalha com cidadão. Ele é pago para defender o cidadão, mesmo que tenha que enfrentar, em determinadas situações, bandidos. Partimos do pressuposto que se ele é bem preparado, ele vai ser o primeiro defensor dos direitos humanos. Porém, existe uma política nacional que tá indo na contramão do que vemos em outros países, (nos quais) a formação do policial busca evitar ao máximo o uso da arma de fogo", avalia Barreira.

"Isso se deve em larga medida a militarização das polícias e má formação dos policiais, e ainda ao fomento da violência policial. Precisamos de um redirecionamento da segurança'', agregou o presidente da Comissão Nacional de Direito Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Hélio Leitão. ''No entanto, o que temos visto é o empoderamento das forças policiais e isso tem ensejado esse aumento enorme dessa violência".

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