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Diagnóstico de endometriose: jornalista conta saga de 15 anos para identificar a doença

A paulista Karoline Gomes encarou peregrinação por consultórios médicos desde a infância, até descobrir doença que afeta cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva.

15 dez 2019 - 18h29
(atualizado às 18h53)
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A jornalista Karoline Gomes encarou consultas e exames ao longo de quinze anos, antes de obter um diagnóstico
A jornalista Karoline Gomes encarou consultas e exames ao longo de quinze anos, antes de obter um diagnóstico
Foto: Karoline Gomes / BBC News Brasil

A jornalista paulista Karoline Gomes passou pelos mesmos sintomas ao longo de quinze anos. Todos os meses, sentia cólicas menstruais fortes. A dor vinha acompanhada de desmaios, idas ao hospital em busca de medicação e dias acamada. Como resposta ao problema, recebia uma leva de medicamentos para dor.

O exemplo da jovem, que tem hoje 26 anos, ilustra o tipo de dificuldade enfrentada por mulheres com endometriose.

No caso de Karoline, as dores apareceram logo na primeira menstruação, aos 9 anos. Aos 12, começou a peregrinação por consultórios médicos. Somente aos 24 ela obteve uma resposta para o problema.

Mundialmente, as estimativas dão conta de que mulheres demoram entre sete e dez anos para obter um veredicto do tipo.

E muitas delas ainda estão à espera: cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva sofrem da doença.

O que é a endometriose

A endometriose é uma doença crônica em que o tecido que reveste o interior do útero, o endométrio, desenvolve-se para fora do órgão.

Em um ciclo normal, essa mucosa se descama e ocasiona o sangramento característico da menstruação. Em caso de fecundação, é nela que o óvulo se fixa dentro do útero.

A condição aparece quando há uma anomalia no processo, já que o endométrio, ao se espalhar, acaba em outros outros cantos do corpo.

O sofrimento físico associado à condição vem daí: os focos de tecido que estão fora do útero também respondem a hormônios e sangram.

Esse sangramento — que pode ocorrer nas proximidades de órgãos como ovários, intestino ou bexiga — causa inflamação e desencadeia dores fortes.

Os focos da doença podem então danificar as trompas uterinas, comprometer órgãos vizinhos ao sistema reprodutor e ir além.

Quando Karoline Gomes encarou um tratamento para a doença, ela já chegara ao quadro avançado. Logo de cara, teve de passar por uma cirurgia para extrair as trompas, dez centímetros do intestino e três centímetros da bexiga.

Primeiros sinais

As cólicas menstruais constantes acenderam o primeiro sinal vermelho para Karoline.

Ela conta que usava desde compressas quentes até remédios analgésicos e anti-inflamatórios para aliviar a dor na região pélvica.

"Ou os médicos diziam que isso era raro para meninas da minha idade, ou que era normal ter essas dores porque eu era muito jovem."

A saída encontrada pelos médicos foi a prescrição do anticoncepcional, que prometia controlar as crises.

"Quando o remédio funcionava, era o paraíso. Eu saía da cama, tinha qualidade de vida", conta Karoline.

Com o tempo, entretanto, as dores voltavam. Meses sem reclamação eram intercalados por períodos de cólica forte.

O ginecologista Bernardo Portugal Lasmar, da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), explica o problema por trás das crises.

"O anticoncepcional por si só não trata a endometriose, apenas controla os sintomas. Enquanto isso, a doença pode evoluir."

Por exemplo, as medicações podem suspender a menstruação e impedir que os focos da doença "sangrem", mas não os eliminam, nem barram seu avanço.

Ainda sem solução para as dores, Karoline mudou de cidade e continuou a saga por um diagnóstico. Entre os exames solicitados, estavam desde amostras de sangue até exames de papanicolau e ultrassons.

"Mas eu precisava de alguém que não tratasse aquilo como apenas questão de rotina", diz Karoline, que recorria à rede privada.

Para ela, um dos obstáculos era dar conta de explicar a própria situação em consultas rápidas.

"Eu sabia dizer o que eu sentia, mas não conseguia colocar a ênfase no quanto doía, eu não tinha tempo."

Em tempo restrito, precisava narrar o longo histórico da doença e os pormenores das crises, em que a dor chegava à região lombar e à virilha.

A necessidade do tempo maior de consulta também é um dos pontos levantados por Lasmar, da Febrasgo. Como o ginecologista destaca, os sinais da endometriose podem ser percebidos já na conversa feita em consultório, antes de qualquer exame físico.

"A paciente vai contar detalhes que são indicativos da doença e o médico precisa estar atento."

Cólicas fortes, dores em regiões próximas, ciclos menstruais curtos e infertilidade são alguns dos alertas possíveis.

Ponto de virada

A luz no fim do túnel apareceu depois de uma conversa entre amigas.

"Uma delas comentou que uma amiga tinha ido à ginecologista e sido diagnosticada com endometriose."

Os sintomas descritos se pareciam com os de Karoline, que recorreu à indicação. Quando chegou ao consultório, contou sua suspeita à médica.

Dessa vez, os pedidos de exame foram além dos testes de sangue, incluindo uma ressonância magnética da pelve.

Com resultados em mão, o veredicto veio.

"Ela disse 'lamento informar, mas você tem uma endometriose muito grave'. Lembro de ter ficado tão feliz que levantei e abracei a médica", conta Karoline.

"Só conseguia pensar 'eu não sou louca, eu sabia o que estava sentindo'. Foi como ter a minha história validada."

Dar um nome ao quadro foi só o primeiro passo. A partir daí, teve de buscar um cirurgião especialista que conseguisse remover os focos da doença.

Para muitos casos de endometriose, essa intervenção cirúrgica que "limpa" os focos, chamada de laparoscopia, é indicada.

São feitas pequenas incisões no abdômen da paciente, por onde se insere o instrumento cirúrgico.

É assim que os médicos visualizam os danos causados pela doença e eliminam focos visíveis.

Karoline mostra as cicatrizes de procedimentos pelos quais passou no tratamento de endometriose
Karoline mostra as cicatrizes de procedimentos pelos quais passou no tratamento de endometriose
Foto: Karoline Gomes / BBC News Brasil

Os médicos indicam cirurgia a mulheres que têm outros órgãos comprometidos, como os rins ou o intestino, ou que sofram com dores fortes mesmo sob efeito do anticoncepcional.

Mas, antes de qualquer procedimento, as possibilidades precisam ser discutidas com o médico. Em casos avançados, pode ser necessária a remoção de órgãos afetados.

"Eu deixei claro para o médico, na presença do meu marido, que ele estava liberado para remover útero e trompas, se achasse necessário."

Mas, depois do primeiro procedimento, a saída indicada pelo médico foi um remédio aplicado por injeções, diretamente na barriga.

A medicação, usada também em casos de câncer de próstata e de mama, desencadeou uma série de efeitos colaterais.

"Foi como enfrentar uma nova doença. Eu não menstruava, tinha muitas dores de estômago e de cabeça, meus pés ficaram inchados e o remédio piorava meu quadro de depressão."

A ideia era combater a doença por meio de seis aplicações do remédio, sem extrair os órgãos afetados.

Depois da quarta aplicação, o plano deu errado. Karoline teve de recorrer ao hospital, depois de sofrer uma hemorragia.

"Eu não sei como você vivia com tanta dor"

Foi uma perfuração no intestino que levou Karoline à sala de cirurgia. Os focos da doença haviam chegado ao reto e à bexiga, danificando órgãos na região da pelve.

O procedimento levou à remoção das duas trompas uterinas, de parte do intestino e da bexiga.

Um médico diferente fez o procedimento em caráter de emergência, já que os danos aos órgãos eram piores que o previsto. Os exames de imagem haviam apontado comprometimento de dois centímetros de intestino — que provou ser cinco vezes maior.

Ao passar pela UTI, onde Karoline seguia internada, o cirurgião responsável comentou o caso.

"Eu me lembro dele falando: 'Eu não sei como você vivia com tanta dor, os seus órgãos estavam dilacerados'", relata ela. "Eu falava o tempo todo que tinha essa dor, mas não me ouviam."

A jovem paulista soube ainda que o quadro de hemorragia e a internação às pressas poderiam ter sido evitados.

"O primeiro cirurgião que me atendeu achava que eu era nova demais para ficar infértil, para tirar as trompas. Foi por isso que parei na UTI e precisei de outra cirurgia."

"Tudo pela possibilidade de que, um dia, eu quisesse ter um bebê", diz Karoline. "Mas esse bebê não existe. Quem existe neste momento sou eu, e eu estou sentindo dor."

Depois de encarar o tratamento para endometriose, Karoline Gomes criou o Endomapa, grupo que reúne mulheres que sofrem da doença
Depois de encarar o tratamento para endometriose, Karoline Gomes criou o Endomapa, grupo que reúne mulheres que sofrem da doença
Foto: Karoline Gomes / BBC News Brasil

Rede de apoio

Uma das dificuldades de mulheres com endometriose está em encontrar médicos que identifiquem a doença. Com sintomas como cólicas menstruais fortes, as pacientes nem sempre conseguem ir além dos exames de rotina.

Foi com isso em mente que a jornalista Karoline Gomes criou o Endomapa, um grupo de Facebook destinado a mulheres que sofrem com a doença — ou suspeitam de um diagnóstico.

"A primeira movimentação do Endomapa foi a de encontrar a médica que me diagnosticou, pela indicação da amiga de uma amiga."

No grupo, as participantes contam desde dificuldades encontradas nas consultas até indicações de médicos no sistema público de saúde. Cabe a Karoline moderar e facilitar o contato entre as participantes.

Por trás do projeto, está a ideia de facilitar o acesso a um atendimento adequado.

"É uma dor incapacitante, são muitos os casos em que não dá para ter uma vida normal e saudável."

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