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Copa América: há mais de 100 anos, Brasil desistiu de sediar evento por causa de pandemia da gripe espanhola

Em 1918, casos de gripe espanhola no país fizeram com que autoridades decidissem adiar campeonato para o ano seguinte.

1 jun 2021 - 08h55
(atualizado às 09h13)
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Em 1918, pandemia de gripe espanhola afetou todo o mundo e matou milhões de pessoas
Em 1918, pandemia de gripe espanhola afetou todo o mundo e matou milhões de pessoas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

No fim de maio de 1919, a seleção brasileira venceu o Campeonato Sul-Americano, hoje conhecido como Copa América, após disputar a final com o Uruguai. A competição, que trouxe o primeiro grande título ao futebol brasileiro, estava programada para o ano anterior, mas foi adiada em razão da grave crise sanitária causada pela gripe espanhola.

Mais de um século depois, o Brasil está novamente no centro de uma discussão que envolve a competição esportiva e uma grave crise sanitária.

O país enfrenta a pandemia de covid-19 com uma vacinação lenta, mais de 462 mil mortes e regiões nas quais especialistas apontam que os casos da doença têm aumentado nas últimas semanas. Apesar do atual cenário, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) anunciou na segunda-feira (31/05) que o Brasil sediará a Copa América deste ano.

Segundo a Conmebol, o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Rogério Caboclo, foi procurado pela confederação após os outros países desistirem de sediar a competição.

O país foi definido como sede da disputa após Argentina e Colômbia desistirem de abrigar a Copa América.

Os jogos estão previstos para ocorrer entre 13 de junho e 10 de julho. O fato se tornou alvo de duras críticas de especialistas e de membros da oposição ao governo Jair Bolsonaro.

No início da noite de segunda, o ministro chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, afirmou que ainda não há nada decidido e que a realização do torneio dependerá do cumprimento de certas condições.

O imbróglio sobre a Copa América fez com que muitos relembrassem da histórica disputa de 1919.

A gripe espanhola

Presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, disse que Brasil 'vive um momento de estabilidade' na pandemia
Presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, disse que Brasil 'vive um momento de estabilidade' na pandemia
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Os primeiros casos de gripe espanhola no Brasil foram registrados por volta de meados de 1918, mesmo ano em que a enfermidade começou a se propagar pelo mundo.

A doença, de rápida propagação e que matava em poucos dias, se espalhou por diversos países por meio dos portos. Estima-se que cerca de 50 milhões de pessoas tenham morrido em decorrência da enfermidade em todo o mundo.

Por volta de setembro daquele ano, navios chegaram de outros países e pessoas infectadas pelo vírus causador dessa gripe desceram em diferentes regiões do Brasil. A doença logo se espalhou.

O governo brasileiro chegou a negar a gravidade da enfermidade. Porém, poucos dias depois, nas últimas semanas de setembro de 1918, decidiu adotar medidas preventivas, como a recomendação de que as pessoas ficassem em suas casas.

Muitos reclamaram do pedido de evitar locais públicos. Sem a devida adoção das medidas sanitárias para conter a propagação do vírus, o Brasil enfrentou uma subida vertiginosa no número de mortes pela doença.

A gravidade da situação exigiu a construção rápida de hospitais de campanha e locais para isolamento de indivíduos infectados com o vírus.

Enquanto o vírus avançava, autoridades do Rio de Janeiro passaram a ficar alertas em relação ao evento que seria sediado na então capital da República naquele ano: o Campeonato Sul-Americano, programado para novembro de 1918.

Dados da época apontam que o Rio de Janeiro contabilizou cerca de 15 mil óbitos entre setembro e novembro de 1918.

Cartaz na Argentina critica a realização de competição de futebol no país, em meio ao pior período da pandemia de covid-19
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Foto: Reuters / BBC News Brasil

Diante da alta de casos e mortes, as autoridades decidiram suspender todos os eventos esportivos.

No período, o clima na recém-criada Confederação Brasileira de Desportos (CBD) foi ruim, porque a entidade havia se empenhado em trazer a disputa, que estava em sua terceira edição, para o Brasil naquele ano.

"Mas os principais entretenimentos, como cinema e teatro, e as escolas estavam fechados por causa da pandemia. Os campeonatos locais estavam suspensos. A situação estava muito complicada, então não havia cabimento continuar com o Sul-Americano", detalha João Manuel Casquinha, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisador sobre a história do esporte no Brasil.

Em meados de outubro de 1918, a CDB enviou um telegrama à Conmebol para comunicar que não havia condições de sediar o campeonato naquele período, em razão da explosão de casos de gripe espanhola no Rio de Janeiro e da orientação para suspender eventos públicos.

Casquinha relata que chegou a haver pressão das confederações das seleções da Argentina e do Chile para que a disputa fosse realizada em outro país. O Uruguai, que também enfrentava um duro período da pandemia de gripe espanhola, chegou a ser cogitado, porque tinha campo apropriado para a disputa. Porém, a disputa acabou adiada.

A competição de 1919

No início de 1919, os números de casos e mortes pela gripe espanhola caíram no país. Diante desse cenário, houve relaxamento nas medidas de prevenção — apesar disso, houve registros de surtos e calamidades em outras regiões do país.

O Carnaval de 1919 se tornou conhecido como uma das maiores festas populares de todos os tempos. O futebol também voltou a ser atração e os estádios dos campeonatos locais passaram a atrair multidões.

O campeonato Sul-Americano daquele ano se tornou um grande sucesso de público. Milhares de pessoas se aglomeraram para assistir aos jogos no Estádio das Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, construído para abrigar a competição internacional que reuniu Brasil, Argentina, Uruguai e Chile.

No dia 29 de maio daquele ano, o Brasil venceu por um a zero o Uruguai, que havia sido o campeão nas duas primeiras edições do Campeonato Sul-Americano. Na arquibancada, 27,5 mil pessoas acompanharam o jogo.

"Já naquela época quem não tinha dinheiro para assistir o jogo dava um jeitinho, na maioria das vezes se acomodava num morro existente nas Laranjeiras com vista para o campo do Fluminense", diz trecho do texto da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) sobre o jogo da final.

Mais de um século depois

Casos de gripe espanhola no Rio de Janeiro foram fundamentais para adiar evento esportivo no passado
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Foto: BIBLIOTECA NACIONAL / BBC News Brasil

O adiamento da competição de 1919 foi citado diversas vezes nas redes sociais na segunda-feira (31/05), após o anúncio do Brasil como sede da Copa América deste ano.

Isso porque muitos comentaram que o país deveria adotar a mesma postura do passado e adiar o campeonato enquanto a pandemia não for considerada controlada.

A ideia de realizar a Copa América no Brasil surgiu após Colômbia e Argentina recusarem sediar o campeonato. Além de enfrentar a pandemia, o primeiro país passa por intensos protestos políticos, cuja repressão já causou dezenas de mortes, segundo organizações de direitos humanos. Já o governo argentino rejeitou a competição devido ao aumento de casos da covid-19 no país, que enfrenta o pior período da pandemia.

Conforme a Conmebol, o presidente da CBF, Rogério Caboclo, foi o responsável por conduzir o diálogo com o governo federal.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) "imediatamente apoiou a iniciativa, com a aprovação dos Ministérios da Casa Civil, da Saúde, das Relações Exteriores e da Secretaria Nacional do Esporte", disse a Conmebol.

No comunicado, o presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, justificou-se dizendo que o Brasil "vive um momento de estabilidade" na pandemia.

Em entrevista à BBC News Brasil na segunda-feira, o médico Miguel Nicolelis, professor de Neurociência da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, afirmou que a realização da disputa no Brasil pode ser a "gota d'água" para a terceira onda de casos e mortes pela covid-19 no país.

O país enfrenta dificuldades relacionadas à pandemia, como o aumento de casos em algumas regiões, após queda nas últimas semanas, e o ritmo da vacinação, considerado lento.

Nicolelis definiu, durante a entrevista à BBC News Brasil, que o anúncio do Brasil como sede do campeonato é um "chute na boca dos brasileiros que perderam familiares, de todos nós que estamos há 14 meses em quarentena em casa. Mas era previsível."

"Nós viramos o escoadouro do lixo do planeta. Tudo que não deve ser feito em questão de pandemia está sendo feito aqui. Essa notícia já correu o mundo, e ninguém consegue acreditar que o segundo país em número de mortes vai sediar um evento continental", acrescentou.

Membros da oposição a Bolsonaro anunciaram medidas para suspender imediatamente a Copa América no país.

Em entrevista coletiva durante a noite de segunda-feira, o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, afirmou que o governo federal ainda está em fase de negociação sobre a realização do evento no país.

"Ainda não tem nada certo, estamos no meio do processo", disse Ramos. "Mas não vamos nos furtar a uma demanda, caso seja possível de atender", completou o ministro.

O historiador João Manuel Casquinha critica a necessidade de realização da disputa neste ano e afirma que se trata de uma situação puramente financeira.

"Em 1918, havia uma tentativa de não adiar a competição sob o argumento dos contratos que haviam sido firmados com empresas em razão da competição e precisavam ser cumpridos. E nessa época os jogadores eram amadores, não podiam ganhar salários como hoje, recebiam apenas um trocado por fora", diz, ressaltando que mesmo com essas condições a disputa foi adiada por seis meses.

"Hoje, vejo que esse interesse em continuar com a Copa é para render contratos de publicidades, além de adiantamentos de dinheiros recebidos para a competição. Os jogadores precisam trabalhar, as confederações precisam pagar as suas contas e tudo isso precisa acontecer. A questão é que agora, em 2021, o futebol é algo que envolve cifras bilionárias. Isso é um bom exemplo para entender que a vida humana não vale nada perto dos contratos, das movimentações financeiras e do entretenimento", acrescenta o professor de história.

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