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Como Brasil deixou de ser um dos campeões em liberdade na internet e se tornou 'parcialmente livre'

Liberdade na Internet diminuiu no Brasil, segundo edição de 2020 do relatório 'Freedom on the Net'. Ao redor do mundo, governos aproveitaram pandemia para aumentar controle online.

28 out 2020 - 08h17
(atualizado às 08h40)
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Brasil já esteve no 'top 5' da liberdade online, mas perdeu o posto
Brasil já esteve no 'top 5' da liberdade online, mas perdeu o posto
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A internet se tornou menos livre no Brasil nos últimos meses. O país, que já esteve no "top 5" da liberdade online, hoje é considerado apenas "parcialmente livre" na rede mundial de computadores.

As conclusões são da edição de 2020 do relatório Freedom on the Net (ou "Liberdade na Rede", em tradução livre). Trata-se de um estudo publicado anualmente pela organização Freedom House, sediada em Washington, DC (EUA).

Desde 2009, o relatório da Freedom House atribui notas aos países com base no quão livres são seus cidadãos para se comunicar via internet.

A medição é feita por meio de um longo questionário, respondido por um grupo de especialistas no assunto em cada país.

Em relação a 2019, o Brasil caiu um ponto na nota — de 64 pontos para 63.

Na edição deste ano, o Brasil está em 21º lugar entre os 65 países analisados pelo relatório. O topo do ranking de 2020 é ocupado pela Islândia, seguida pela Estônia.

A queda não é novidade para o país, que está perdendo posições desde o começo da medição, em 2009.

Naquele ano, o país ficou em 4º lugar no ranking dos gozavam de mais liberdade online. Ficou atrás apenas de Estônia, Reino Unido e África do Sul.

Mesmo em declínio, o Brasil manteve o status de país "livre" na internet até 2015 — no levantamento de 2016, passou a ser considerado apenas "parcialmente livre" pelo relatório.

'Fake news' e o projeto no Senado

Aprovado pelo Senado (foto), PL das Fake News segue agora para a Câmara — e, para a organização Freedom House, projeto coloca em risco liberdade de expressão
Aprovado pelo Senado (foto), PL das Fake News segue agora para a Câmara — e, para a organização Freedom House, projeto coloca em risco liberdade de expressão
Foto: EPA / BBC News Brasil

O Brasil possui hoje uma das legislações digitais mais completas e avançadas do mundo — mas, na visão da Freedom House, os direitos do internauta brasileiro são hoje ameaçados pela proliferação de informações falsas na rede e por iniciativas legislativas consideradas equivocadas, como o chamado "PL das Fake News".

Além disso, a liberdade online no país também é afetada por limitações de infraestrutura — embora 75% dos domicílios no país tenham acesso à internet, esse percentual ainda é menor que o de outros países da região, como o Chile e a Argentina.

"O que nós vimos este ano, e que foi uma causa particular de preocupação, foi o envolvimento do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), e de pessoas próximas ao governo, na disseminação de desinformação online", diz Amy Slipowitz, que é gerente de pesquisas da Freedom House e cobre a América Latina para a instituição.

"Outro área (em que o país declinou) é que jornalistas que trabalham no meio digital continuam sofrendo violência e ataques por causa do trabalho. Só durante o período coberto por este relatório (junho de 2019 a maio de 2020), dois profissionais que faziam jornalismo local na internet foram mortos a tiros", diz Amy à BBC News Brasil.

"Então, estas são algumas das razões para o Brasil ter sido classificado como 'parcialmente livre' no relatório deste ano", diz ela.

Slipowitz diz ainda que os usuários de internet no Brasil e a sociedade civil do país devem estar atentos a propostas legislativas que podem restringir a liberdade de expressão — na visão da organização, seria o caso do chamado "PL das Fake News", que foi aprovado pelo Senado em junho deste ano. O texto tinha como objetivo coibir a disseminação de boatos online, e aguarda agora deliberação na Câmara.

"No Brasil, o Senado aprovou um projeto de lei (o das Fake News) que é particularmente problemático, e perigoso para a liberdade na internet. Então, seria importante que os internautas e a sociedade civil se mantivessem atentos e trabalhassem contra este projeto", diz Slipowitz.

"Se aprovado, ele pode criminalizar certos tipos de conteúdo; pode criar pré-requisitos de identificação de usuários de redes sociais e outras plataformas; e pode obrigar aplicativos (como o WhatsApp) a manter cópias das mensagens enviadas", diz a pesquisadora da Freedom House.

A visão, no entanto, não é unânime entre os pesquisadores que estudam a regulamentação da internet no Brasil.

Pablo Ortellado é professor do curso de gestão de políticas públicas da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da mesma universidade.

Segundo ele, o relatório da Freedom House é minucioso e está bem fundamentado, mas possui um viés liberal — o relatório defende de que a liberdade de expressão online se sobrepõe a outros direitos humanos, como o direito ao esquecimento.

"Há (no relatório) uma visão unilateral em defesa da liberdade de expressão e da privacidade, sobretudo quando ela conflita com outros direitos", diz Ortellado.

"O direito ao esquecimento, quando bem implementado, é parte do direito ao desenvolvimento da personalidade. É um direito humano. Direito ao esquecimento, quando bem implementado, significa a desindexação das plataformas. Então, num mecanismo de busca, eu não vou mais encontrar resultados sobre um crime que eu cometi, depois que a sentença foi cumprida", explica ele.

"Por que? Para permitir que eu possa desenvolver minha personalidade. Reconstruir minha vida e seguir me desenvolvendo sem estar amarrado", diz. "Mas no relatório eles tratam isso como se fosse um impedimento à liberdade de expressão", diz Ortellado.

O pesquisador também discorda da caracterização feita sobre o PL das Fake News.

O Brasil possui hoje uma das legislações digitais mais completas e avançadas do mundo — mas, segundo relatório, país enfrenta novas ameaças, como redes de fake news
O Brasil possui hoje uma das legislações digitais mais completas e avançadas do mundo — mas, segundo relatório, país enfrenta novas ameaças, como redes de fake news
Foto: REUTERS/Pilar Olivares / BBC News Brasil

Em sua última versão, diz Ortellado, o projeto de lei superou os principais problemas, embora ainda tenha imprecisões pontuais.

"O PL teve muitas versões. Mas o PL que foi aprovado não é ruim. Ele tem problemas de implementação e de definições aqui e ali. Mas não é uma ameaça à liberdade na internet, de forma alguma, ao meu ver", diz Ortellado.

O professor da USP defende medidas que estão presentes no projeto de lei, como a possibilidade de identificar a origem de mensagens virais em aplicativos como o WhatsApp.

No mundo, liberdade na internet cai pelo 10º ano seguido

Em termos globais, este é o décimo ano seguido de recuo na liberdade online conforme o relatório da Freedom House.

O think-tank destaca três fatores que contribuíram para piorar a situação ao redor do mundo.

Primeiro, vários governantes ao redor do mundo passaram a usar a pandemia como um pretexto para limitar o acesso à informação. Depois, tecnologias que antes eram vistas como excessivamente intrusivas passaram a ser usadas para controlar o movimento da população durante a pandemia. Por fim, vários países aumentaram os controles sobre o fluxo de dados com o restante do mundo, num processo de "fragmentação" da internet.

"Este é o décimo ano seguido em que vemos um declínio da liberdade online. Então, é uma tendência que não se deve exclusivamente à pandemia", diz Amy Slipowitz.

"Dito isso, a pandemia (do novo coronavírus) de fato teve um papel importante em muitos dos países onde esse declínio aconteceu. Atores estatais em muitos países aproveitaram 'oportunidades' criadas pela pandemia para controlar a narrativa na internet, para censurar vozes críticas e para implementar novas ferramentas tecnológicas de controle", diz Slipowitz à BBC News Brasil.

"(Alguns governos) usaram a pandemia como um pretexto para expandir a vigilância e a coleta de dados dos cidadãos. Também houve uma expansão rápida de mecanismos de biometria e de inteligência artificial para lidar com a crise de saúde pública. E isso criou novos riscos para a democracia e para os direitos humanos", diz ela.

"Ao mesmo tempo, alguns líderes políticos usaram a pandemia como desculpa para censurar notícias desfavoráveis e para prender críticos; também usaram minorias étnicas e religiosas como 'bodes expiatórios' para os problemas", diz Slipowitz.

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