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Relatos da quarentena (3): O cotidiano na lavanderia da base aérea

'Na fila de pessoas que estão lavando suas roupas, e das que esperam sua vez em alguma das três máquinas, todo tipo de enredo se desenrola', conta Caleb Guerra, que está na Base Aérea de Anápolis após ter regressado de Wuhan, na China

19 fev 2020 - 10h10
(atualizado às 14h58)
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ANÁPOLIS - O Estado iniciou na semana passada a publicação de uma série de relatos escritos por Caleb Guerra, de 28 anos, estudante de Literatura que morava em Wuhan. Ele está entre os 34 brasileiros repatriados da província, área mais afetada pela epidemia de coronavírus. Guerra aceitou escrever um diário com suas impressões sobre a quarentena na Base Aérea em Anápolis, em Goiás. Este é o seu terceiro texto.

"(O texto de hoje é dedicado a todos os meus companheiros de quarentena que conseguem encontrar resquícios de alegria e risadas em meio ao drama que nos alcançou em Wuhan e nos acompanhou até o Brasil).

Aqui na base os dias seguem com poucas emoções óbvias mas centenas de pequenas peças dramáticas que se desenrolam via conversa. Sobre algumas das histórias contadas, o que nós sabemos sempre é demais mas nunca o suficiente. No fim, o que importa mesmo é o prazer de ter algo para contar e ouvir. Quando se tem um grupo grande de pessoas que não se conhecem e nunca conviveram juntas dividindo os mesmos espaços e horários, o cotidiano se torna uma exibição constante de diferentes gêneros cinematográficos.

E se você me perguntar onde é o maior palco de exibição desses filmes eu te respondo: a lavanderia. Na fila de pessoas que estão lavando suas roupas, e das que esperam sua vez em alguma das três máquinas, todo tipo de enredo se desenrola.

É possível, por exemplo, assistir a comédia do atrasado despreocupado se encontrando com o impaciente de boca afiada. Essa é a história daquele cujas roupas já estão limpas e secas na máquina mas ainda não veio buscá-las. Ele é aquele que chega a passos largos e com desculpas pérfidas esbarrando com o cara que já não aguenta mais ficar de pé esperando para colocar sua roupa para lavar. O atrasado balbucia o óbvio do ridículo: "me desculpa, atrasei", e o impaciente responde com o sarcasmo seco: "ah sim, com tanta, mas tanta coisa que você tem pra fazer aqui, deve ser fácil se atrasar mesmo. Normal, acontece".

Tem também a tragédia do antipático e sempre sonolento que encontra no recôndito da lavanderia com o palavroso e sempre expressivo demais. "Se chover hoje de novo eu não tenho ideia de como vou poder suportar mais um dia de chuva. Muita chuva! Quem é que aguenta? Se o tempo fechar e chover de novo eu talvez nem sinta vontade de sair do quarto. E é ruim isso, não é? Quem é que aguenta? Poxa vida! Olha lá! E se chover amanhã de novo? Meu Deus, nem sei se eu aguento! Mas também né, quem é que aguenta?" - diz o prolixo primeiro arrumando os óculos, esfregando a testa, coçando a cabeça e por fim balançando as duas mãos e batendo palminhas enquanto vai dobrando os joelhos devagarzinho e dando uns pulinhos tímidos sem tirar os pés do chão.

Você pode assistir também ao documentário que conta a história da rotina do organizador metódico. Esse está não só disposto como engajado a encontrar o melhor método de organização da fila. Ele vai contando na entrevista sobre o processo criativo de criar uma lista em sua caderneta espiral colorida para marcar os horários das lavagens e permitir que cada pessoa que chegue na lavanderia saiba de quem é a roupa dentro da máquina, quanto tempo ela vai ficar lá e quando o dono das peças vai voltar para buscar.

Às vezes o documentário tem uma reviravolta na trama quando alguém tira suas roupas da lavanderia mas esquece de riscar o nome da lista. Quando isso acontece, nós temos uma verdadeira aventura documental na telona: assistimos ao organizador metódico rodar a base caçando com unhas e dentes quem ousou quebrar o protocolo perfeito.

Assistimos apreensivos ao drama da discussão daquele que jura ter deixado o relógio para despertar assim que sua roupa estivesse pronta mas não ouviu por algum motivo. Após ter atrasado uns míseros cinco minutos, acabou cruzando o caminho daquela atrevida desesperada que foi logo arrancando tudo o que tinha dele de dentro da máquina e colocou de qualquer jeito em cima do balcão.

E há ainda o suspense que narra o conto dos misteriosos sem-rosto que esperam o cair da noite para lavar roupa. Deles sabemos muito pouco, e tudo é especulação. Eles são os rebeldes que não querem se submeter à convenção social de pôr seus nomes na lista colorida do organizador metódico e por isso vagueiam pelos corredores na calada da madrugada com seus cestos de roupa suja.

É difícil passar os dias aqui sem ter a mente me transportando para a tragédia de Wuhan o tempo todo. Por isso serei eternamente agradecido aos amigos que fiz aqui e que sentam comigo no corredor assistindo diariamente aos dramas da lavanderia da quarentena e me ajudam a criar essas crônicas insanas para passar o tempo. Cláudia, Heros, Alefy, Gabi, Igor e Higor. Obrigado por possibilitarem risadas nesse momento dramático das nossas vidas. Sem vocês, lavar roupa suja não seria a mesma coisa.

Estadão
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