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Mais de 500 crianças e adolescentes venezuelanos cruzaram a fronteira do Brasil sozinhos, diz ONG

De acordo com relatório da Human Rights Watch, entre 1º de maio e 21 de novembro, 529 menores chegaram à Roraima desacompanhados; Casa Civil diz que número de crianças e adolescentes desacompanhados na Operação Acolhida é de 19

5 dez 2019 - 12h05
(atualizado às 19h44)
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SÃO PAULO - Relatório divulgado nesta quinta-feira, 5, pela ONG Human Rights Watch com base em informações da Defensoria Pública da União (DPU) mostra que pelo menos 529 crianças e adolescentes venezuelanos cruzaram a fronteira com Roraima e chegaram ao Brasil desacompanhados. Ainda conforme o relatório, quase 90% deles têm entre 13 e 17 anos e chegaram ao País entre o começo de maio e final de novembro deste ano. É a primeira vez que a Defensoria Pública da União faz o levantamento com um recorte mais específico por faixa etária.

Muitos jovens relataram que viajaram sozinhos, de carona, fugindo de situações de abuso e extrema pobreza na Venezuela. Outros vêm para o Brasil também em busca de emprego. "É uma realidade dramática, pois essas crianças e adolescentes estão expostos a todos os tipos de abuso. Muitos na Venezuela sofriam maus-tratos, passavam fome ou trabalhavam em garimpos", afirma César Muñoz, pesquisador sênior da Human Rights Watch no Brasil.

De acordo com Muñoz, muitos desses adolescentes venezuelanos que chegavam ao País eram levados para abrigos, mas esses locais já estão cheios. O relatório aponta que os dois abrigos estaduais em Roraima, para adolescentes de 12 a 17 anos, têm capacidade para receber só 15 meninos e 13 meninas. E uma decisão judicial de setembro já teria impedido que essas instituições recebessem mais jovens, por causa da superlotação e sa falta de condições adequadas de higiene, salubridade e segurança.

Na decisão, a Justiça destaca que o abrigo masculino estaria com 200% de superlotação e, o feminino, 150%. O juiz determinou ainda que o Estado de Roraima buscasse alternativas para os "casos atuais e para os que ainda virão", expandindo unidades ou construindo novas.

Em nota, o governo de Roraima afirma que, a partir de julho deste ano, foi constatada a superlotação, o que impossibilitou o recebimento de mais jovens. O texto afirma que o governo definiu um plano de contingência, em cojunto com agências de ação humanitária, como o Unicef, braço das Nações Unidas para a infância, Acnur e Cruz Vermelha. E que, em dezembro, está prevista a inauguração de duas casas, uma em Pacaraima, na fronteira, e outra em Boa Vista, com capacidade para 10 adolescentes cada uma.

"E quando as casas lares forem inauguradas, já vão nascer deficitárias. Cada uma só pode receber dez crianças. o máximo permitido pela legislação brasileira. Como vai ficar a situação dos excedentes?", questiona Denise Cavalcanti, presidente da Comissão dos Direitos da Criança da seção de Roraima da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Operação Acolhida

Diante da falta de vagas nos abrigos, muitos adolescentes são encaminhados para a Operação Acolhida, criada pelo governo federal para dar assistência de emergência aos migrantes e refugiados venezuelanos em maior vulnerabilidade que chegam a Roraima. Mas especialistas afirmam que essa não é a solução ideal. "A Operação Acolhida funciona como uma operação humanitária, não é um abrigo específico para atender as demandas e necessidades de crianças e adolescentes", diz Ligia Prado da Rocha, defensora pública federal. "O fato de esses jovens estarem na Operação Acolhida, que recebe centenas de pessoas e não são voltadas a esse público, já é uma violação ao Estatuto da Criança e do Adolescente", diz Camila Asano, coordenadora de programas da ONG Conectas.

Sem um responsável legal, esses jovens ficam privados de serviços básicos. "Não podem ir para a escola, ter acesso a cuidados de saúde. Não há um monitoramento maior por parte das autoridades e algumas acabam indo viver nas ruas", afirma o pesquisador César Muñoz.

De acordo com Marcela Ulhoa, oficial de proteção da criança em emergência do Unicef, a ida dos jovens para a Operação Acolhida é uma medida provisória. "Diante desse cenário de aumento da chegada de venezuelanos, não há resposta fácil e que envolva um único ator. Estamos dialogando com os governos federal e estadual para buscar respostas não só para a questão dos jovens venezuelanos, mas também para os que vivem em Roraima", afirma.

Em nota, o Ministério da Casa Civil, que coordena a Operação Acolhida, afirma que "o referido relatório da organização tenta responsabilizar os atores errados pelas condições de crianças e adolescentes. O governo brasileiro não recebeu tal relatório e apenas tomou conhecimento do mesmo por meio da imprensa. Certamente, a afirmação de que as "autoridades brasileiras não estão protegendo adequadamente as crianças e adolescentes" é infundada", diz o texto.

Ainda de acordo com a nota, "o número de crianças e adolescentes desacompanhados (porém cuidados) na Operação Acolhida é de apenas 19, ante 2.839 crianças e adolescentes acompanhados." O texto diz ainda que o atendimento a crianças e adolescentes é competência dos Estados, mas que passou a fazer a acolhida após decisão judicial que determinou a interdição dos abrigos. E diz que "a Operação Acolhida é um remédio paliativo para uma situação similar aos grandes deslocamentos populacionais causados por guerras. Nesse caso, a guerra se dá pelo governo socialista venezuelano contra seu próprio povo."

Chegada de venezuelanos

E esse número de crianças e adolescentes, conforme a Human Rights Watch, pode até ser maior, pois muitos chegam sem passar pelo posto de fronteira onde defensores públicos da União conduzem as entrevistas. Para Muñoz, um caminho possível para diminuir o drama desses adolescentes seria contar com o apoio de governos na criação de mais lares temporários, onde eles poderiam viver por um período. Esses lares seriam como abrigos, que podem contar com o apoio de entidades assistenciais. Ou tentar a inserção desses adolescentes em programas de famílias acolhedoras, que funcionam como uma espécie de família adotiva temporária.

Assim que os jovens chegam desacompanhados, o ideal é que sejam acionados órgãos de proteção, como conselho tutelar, organismos internacionais que dão apoio nessas situações e o poder Judiciário, a fim de definir quais medidas protetivas são necessárias em cada caso.

Ligia Prado da Rocha explica que, nesse fluxo migratório, os mais vulneráveis tendem a vir por último. "Primeiro, chegam pessoas para trabalhar e que buscam um emprego para sustentar os parentes. Depois, vêm as famílias e, por último, os mais pobres e mais vulneráveis, caso desses jovens." Ela explica também que os motivos que levam esses jovens a buscar um outro país são variados. "Muitos deles já trabalhavam para sustentar as famílias, outros já estavam desvinculados desse contato familiar, vivendo numa situação de muita pobreza", conta. Ela afirma que muitos têm parentes no Brasil, mas chegam sem saber onde eles estão. "A maioria ainda vem acompanhada da família. Outros chegam com um adulto, mas que não necessariamente é o pai ou mãe. E uma parte vem sozinha", diz.

De acordo com Paulo Thadeu Franco das Neves, presidente do Conselho Estadual dos Direitos das Crianças e Adolescentes de Roraima, muitas crianças e adolescentes estão vivendo em ocupações, onde não se sabe se elas vivem acompanhadas por responsáveis ou não. Seriam pelo menos 16 ocupações somente em Boa Vista, segundo Neves. "A situação é gravíssima. Estimamos que mais de 800 crianças vivam nesses locais, mas não sabemos dizer se com responsáveis ou não. Não há controle algum", diz.

Tanto Tadeu quantoa Human Rights Watch apontam que esses jovens podem vir a ser alvos fáceis para qualquer tipo de abuso. "Muitos continuam sendo vítimas de exploração, outros podem ser cooptados para trabalhar no tráfico de drogas e tememos até que sejam alvo de quadrilhas que traficam pessoas", diz.

Também em nota, o Ministério da Defesa afirma que mais de 300 mil venezuelanos foram atendidos nos postos de fronteira de recepção, identificação e triagem, em Roraima. Dessas pessoas, 175 mil solicitaram regularização migratória, sendo 75 mil pedidos de refúgio e 100 mil pedidos de residência temporária. Até agora, mais de 25 mil venezuelanos foram interiorizados. Em Boa Vista e Pacaraima, estão instalados 13 abrigos temporários e um de albergamento, que atendem mais de 7 mil pessoas.

Estadão
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