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Fuga de talentos afeta saúde e inovação e põe em risco capacidade de recuperação econômica

Especialistas apontam impactos negativos sobre a qualidade de vida da população. Estadão revelou recorde de vistos concedidos a 'profissionais excepcionais' irem aos Estados Unidos

27 mai 2021 - 18h02
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SÃO PAULO - A fuga de talentos brasileiros, constatada de forma mais intensa durante a pandemia de covid-19, afeta principalmente os setores de saúde, pesquisa, tecnologia e inovação, segundo relatam especialistas. Para eles, o cenário observado neste momento, além de prejudicar o combate ao coronavírus, também traz impactos negativos para a qualidade de vida da população e até põe em risco a capacidade de recuperação econômica do Brasil.

Conforme o Estadão divulgou nesta quarta-feira, 26, em 2020, os Estados Unidos registraram alta de 36% nos vistos de permanência concedidos a brasileiros em uma categoria específica, o EB2, voltada para os chamados "profissionais excepcionais". Foram 1.899 trabalhadores qualificados que deixaram o País, ao todo, o maior índice em pelo menos uma década.

Os Estados Unidos, no entanto, não são o único destino da mão de obra qualificada. Países da Europa, China e até os Emirados Árabes têm apostado em talentos estrangeiros para encontrar soluções de problemas, desenvolver novas tecnologias e, assim, acelerar a saída da crise econômica provocada pela covid-19.

"O mundo reconhece o Brasil como uma fonte de bons pesquisadores, não só pela nossa formação, mas pelas condições de trabalho aqui", afirma a professora Luciana Lima, de Estratégias de Negócios e Pessoas, do Insper. "Essa mobilidade profissional vem aumentando em velocidade muito grande e vai provocar problemas logo mais."

Segundo explica, investimentos em tecnologia e inovação tendem a aquecer a economia e, portanto, acelerar a recuperação dos países. "E isso não existe sem capital humano. Por esse motivo, há uma guerra por talentos no mundo, com profissionais valendo ouro", diz Luciana. "Trabalhadores qualificados, capazes de realizar atividades complexas, geram produtividade."

Presidente da Academia Brasileira de Ciência (ABC) e professor do Instituto de Física da UFRJ, Luiz Davidovich relata testemunhar a evasão de talentos no próprio departamento. "Recentemente, quatro ou cinco pesquisadores passaram em concursos no exterior, um ex-aluno pediu licença para trabalhar nos Emirados Árabes, e jovens professores foram para Holanda, Austrália e Chile", diz.

"São pessoas de boa formação que deveriam ser vistas como uma reserva no País. Mas, em vez de produzir aqui, vão liderar pesquisas lá fora."

Para Davidovich, a saída de cientistas reflete diretamente na qualidade dos empregos e no dia a dia das pessoas. "Falar em pesquisa aplicada é falar sobre vacina ou medicamentos, por exemplo, mas também sobre desenvolvimento de novos materiais. Quem não faz fica sem acesso ou compra mais caro", descreve. " Sem pesquisa, o Brasil perde futuro, perde a possibilidade de protagonismo internacional e perde qualidade de vida da população."

O cientista avalia, ainda, que a saída de mão de obra qualificada significa menos recursos. "Outros países sabem que, em tempos de crise, é preciso investir em conhecimento, porque é a melhor maneira de recuperar a economia. Hoje, a gente vê Estados Unidos e China brigando pela tecnologia 5G. É uma guerra sem tanques ou submarinos. E, aqui, estamos na contramão", diz. "No Brasil, um exemplo é a cultura do açaí na Amazônia, que traz U$ 1 bilhão (R$ 5,3 bilhões) por ano e emprega 300 mil pessoas."

Pesquisadores são unânimes em avaliar que cortes em financiamento público de pesquisas têm estimulado cientistas a saírem do Brasil. Com redução de orçamento, também há universidades com risco de fechar. "Sem recurso, muitos não veem perspectiva de continuar os projetos nos seus laboratórios. Então a tendência é que, se tiver condição, mudar de país", afirma Fernanda Sobral, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Ela também defende a realização de novos estudos para traçar os impactos econômicos e sociais da diáspora na ciência.

Segundo avalia Vanessa Cepellos, professora de Gestão de Pessoas da FGV-EAESP, a fuga de talentos estaria associada à "falta de perspectiva" e à procura de melhores condições de trabalho e remuneração. "Não é uma decisão que alguém toma do dia para a noite, então há muitos fatores que vão interferindo até o profissional decidir sair do Brasil", afirma. "Geralmente são pessoas com alta qualificação e, o mais triste, que vão acabar deixando seus produtos finais naquele local."

A professora da Unicamp Ana Maria Carneiro, que está à frente de pesquisas sobre migração, pondera que nem sempre a diáspora na ciência é ruim para o Brasil. "Depende muito se o profissional mantém algum vínculo ou não. A literatura mostra que, em vários países, esse movimento contribui para o desenvolvimento científico e tecnológico, com mais facilidades para remessas de recursos e até na internacionalização de empresas ou apoio para resolução de conflitos."

Problema maior, diz a pesquisadora, é a hipótese de o talente romper os vínculos com o Brasil. "Grande parte dessas pessoas é proveniente de universidades públicas ou recebeu bolsas de pesquisa. Ou seja, o País perde todo o recurso que investiu naquela formação, além das competências específicas."

Estadão
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