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Extensão da Lei Maria da Penha para trans divide tribunais

Parte dos juízes nega medidas protetivas para transexuais sob argumento do sexo biológico e caso de jovem paulista é levado ao STJ

8 set 2021 - 05h11
(atualizado em 14/9/2021 às 17h26)
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Há mais de oito meses, Luana Emanuele, então com 18 anos, correu pelas ruas de Juquiá (SP) perseguida pelo pai, que a agrediu em casa quando ela resistiu a uma tentativa de estupro. Na fuga, ela encontrou policiais militares que contiveram o homem, registraram boletim de ocorrência e a encaminharam a um hospital, onde ela fez exame de corpo delito. Mesmo com o flagrante e a pele toda marcada, a medida protetiva que tentou pedir contra o pai foi negada porque Luana é uma mulher transexual.

Tribunais estão divididos sobre Lei Maria da Penha
Tribunais estão divididos sobre Lei Maria da Penha
Foto: Arquivo/Marcello Casal Jr / Agência Brasil

"Como eu não tinha pra onde ir, tive de voltar para São Paulo", conta Luana. Segundo ela, os PMs disseram que só podiam registrar o crime e a levar para um lugar seguro. "Falaram que (juízes) não iam aceitar a medida protetiva porque eu era uma mulher trans." Em maio, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) negou a medida a ela, por causa deste exato motivo.

Apesar de haver precedentes, não há entendimento unânime na Justiça sobre estender a Lei Maria da Penha, antiviolência doméstica, para mulheres transexuais. A medida protetiva é, por exemplo, afastar o agressor da casa ou do contato - físico ou virtual - com a vítima, sob pena de prisão caso haja reincidência.

O TJ-SP sustentou "impossibilidade jurídica de fazer a equiparação 'transexual feminino = mulher'". A decisão foi pela maioria dos desembargadores - só uma votou a favor da medida para Luana. Já o Ministério Público paulista (MP-SP) recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) - o julgamento de um colegiado de ministros pode render jurisprudência inédita sobre o tema.

O próprio TJ-SP já havia resolvido, em janeiro, que o caso de uma transexual agredida pelo ex-companheiro seria julgado na Vara de Violência Doméstica. No TJ do Distrito Federal, desde 2018 há decisões que reconhecem não só o sexo biológico, mas o gênero feminino. Um acórdão firmado por aquele Tribunal em janeiro deste ano também firma que o fato de a vítima ser transexual "não afasta a proteção legal, tampouco a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar".

Por outro lado, em junho, a Justiça de Minas negou medida protetiva a uma transexual de Juiz de Fora agredida pelo padrasto. "Conforme se verifica nos autos, não se trata de uma vítima mulher, assim como as agressões não ocorreram em razão do gênero feminino", diz um trecho da decisão.

Para o promotor Luis Marcelo Mileo Theodoro, do MP-SP, a interpretação mais correta para a Lei Maria da Penha é a de que ela versa sobre o gênero feminino independentemente do sexo biológico. "Inclusive, sem necessidade da redesignação sexual", defende.

Em nota, o TJ-SP diz que "não é permitida orientação da administração sobre o resultado dos julgamentos", mas destaca que juízes têm "independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento". Se há discordância, afirma, cabe às partes recorrer.

Já a Associação Paulista dos Magistrados afirma que "a lei é aplicável a toda mulher, 'cis' (que se identifica com o gênero de nascença) ou 'trans'". Segundo a entidade, a lei "reveste-se de inigualável valor civilizatório" e resgata "dívida social histórica".

Para Matheus Falivene, doutor em Direito Penal pela USP, apesar de a Lei Maria da Penha "não fazer referência expressa à sua aplicação a mulheres trans, a jurisprudência entende que ela é possível nos casos de violência praticada no âmbito familiar e doméstico". Isso porque, diz ele, "a lei não distingue orientação sexual ou identidade de gênero das vítimas mulheres, de forma que o fato de a ofendida ser transexual feminina não afasta a proteção legal, inclusive com relação a medidas protetivas de urgência".

Paulo Iotti, diretor-presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero e doutor em Direito Constitucional, diz que o fato de a lei não deixar explícita a inclusão das trans não é um problema. "O juiz pode ir além da letra da lei para estender direitos, não para restringir", diz. "Se o STF já disse que identidade de gênero não se prova e depende de autoconvicção, e que a mulher transexual pode mudar seus registros civis para se declarar mulher", acrescenta ele, a extensão da Maria da Penha é possível. Segundo dados reunidos pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os registros de violência contra a comunidade LGBTQI+ aumentaram mais de 20% em todos os cenários possíveis, entre 2019 e 2020: lesão corporal dolosa (20,9%), homicídio doloso (24,7%) e estupro (20,5).

"Há um conflito inteiramente contraditório, mas também devemos levar em consideração que o sistema judiciário é contraditório. A previsão legal de uma norma não significa que juízes vão atuar de acordo com ela", afirma Adilson Moreira, doutor pela Universidade de Harvard e especialista em Direito Antidiscriminatório. "Esse problema vai sendo corrigido à medida que esses casos chegam às instâncias superiores. O STF já disse que ações afirmativas são constitucionais, mas juízes de instâncias inferiores ainda vão contra isso."

Jovem sofre ameaças de morte e tem medo de ser achada

Ainda não há data para a análise do recurso no STJ. Luana diz se sentir "descrente" no sistema e com medo de ser novamente agredida. Desde que chegou a São Paulo, a avó com quem morava morreu e ela foi parar em um centro de acolhimento para jovens LGBTI+. Hoje, vive sozinha em uma quitinete que paga com seu trabalho em um hotel, mas conta ainda receber ameaças quase semanais do pai e de um tio que mora na capital, além de temer que descubram seu endereço.

"Ele chegou a me encontrar, mas consegui fugir antes. Depois, entrou em contato comigo me xingando, falando que se eu voltasse lá iria me matar", conta. "Resolvi não fazer nada, porque me sinto vulnerável."

O boletim anual divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) também aponta uma escalada dessas violências, que totalizaram 175 assassinatos em 2020, mantendo o Brasil como o líder mundial desse ranking desde que ele foi criado. Apenas no primeiro semestre deste ano, outras 80 mortes já foram identificadas pela entidade, que também contabilizou a sua vítima mais jovem da transfobia no País: Keron Ravache, assassinada aos 13 anos no interior do Ceará.

Estadão
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