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Doações atraem até quem tem casa, mas moradores de rua ainda resistem a ir a abrigos

Prefeitura de São Paulo montou tendas de atendimento e Metrô abriu estação para os sem-teto passarem a noite

30 jul 2021 - 01h14
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SÃO PAULO -Perto das 17 horas, o porteiro Jaime Pereira, de 49 anos, caminhou com ajuda de uma bengala até uma tenda emergencial montada pela Prefeitura e abordou a funcionária que remexia o panelão de canja de galinha: "Boa tarde, moça, já estão servindo a sopa?" Simpático, aceitou um copo d'água, agradeceu a atenção e respondeu que iria esperar a comida sentado em um dos bancos da Praça Miguel Dell'Erba, na Lapa, zona oeste de São Paulo.

Morador do Jaraguá, na mesma região, Pereira está desempregado desde o início de 2020. Sem propostas de trabalho e com os preços lá em cima, relata que acabou o dinheiro para comer em casa e, por isso, precisa sair procurando por locais em que há distribuição de alimentos.

"No meu armário, até tem arroz, feijão e macarrão. Mas há um mês e meio o gás acabou e eu não tenho como comprar", diz o porteiro. "Tenho feito as três refeições na rua mesmo. Como pego o ônibus de graça, venho sempre para cá. Se não fossem essas doações, não saberia o que seria de mim."

Com o aumento de pessoas em situação de vulnerabilidade por causa da pandemia de covid-19 e a previsão de recorde de frio dos próximos dias, a gestão Ricardo Nunes (MDB) anunciou uma força-tarefa de acolhimento, com cinco tendas emergenciais espalhadas pela cidade. Nos locais, equipes da Prefeitura oferecem alimento, cobertores, máscaras e tentam encaminhar moradores de rua para albergues.

Apesar de ter sido pensado para desabrigados, o serviço acaba atraindo muita gente que até tem casa, mas se vê em situação de vulnerabilidade. "Isso é uma mordomia: sopinha e chocolate quente de graça", brinca Cláudia Silva, de 45 anos, que carrega uma dúzia de papeizinhos no bolso, com o mesmo texto escrito à mão, para pedir dinheiro. "Estou desempregada e tudo o que eu consigo é para comprar mistura. Quando aparece uma oportunidade dessa, tem de abraçar."

Diretor da Defesa Civil na Lapa, Robson Bertolotto afirma que a Praça Dell'Erba foi escolhida por concentrar moradores de rua e também pela proximidade do Terminal da Lapa, onde há maior circulação. "O planejamento é atender até 500 pessoas por dia, mas qualquer um que chegar vai ser atendido", diz. "É uma ação humanitária."

Na Lapa, as simulações do Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas (CGE) apontavam sensação térmica de 0ºC para a próxima madrugada. Pela Praça, equipes de assistência social, identificadas com coletes e pranchetas, abordavam os moradores e tentavam convencê-los a ir para abrigos. A maioria, no entanto, preferia continuar ali.

"Já fui e achei terrível", afirma Ricardo Souza, de 37 anos, que diz estar há 15 dias nas ruas e montou uma barraca com lona plástica no local. Ele aceitou dois pratos de canja, mas negou o convite para ir dormir em outro lugar. "No frio, até dá para aguentar. Eu só vou para o albergue quando está chovendo, porque aí não tem jeito", concordou o amigo Edson Cruz, de 35, que vive naquele espaço.

Além da Lapa, os bairros da Mooca, na zona leste, e de Santo Amaro, na zona sul, também receberam tendas emergenciais. Já no centro, os equipamentos foram montados nas Praças da Sé e Princesa Isabel.

'Agora mesmo eu estava todo me tremendo lá fora'

Mesmo com os termômetros marcando 9ºC às 23 horas, dezenas de barracas e pessoas enroladas em cobertores eram vistas no Pateo do Collegio, Viaduto do Chá e Praça da Sé, na região central. Com a queda da temperatura, também era comum encontrar diferentes grupos chegando, em veículos de passeio ou vans, para fazer doações na noite desta quinta-feira, 30.

"Albergue não é lugar para as crianças: tem muita confusão. E, ainda mais com essa pandemia, também tem risco de doença", argumenta Tamires Silva, de 30 anos, que se alojou nas escadarias da Catedral da Sé. Com ela, estavam cinco dos seus oito filhos - o mais novo de nove meses.

A menos de um quilômetro dali, o governo João Doria (PSDB) transformou uma parte da Estação Dom Pedro 2º, do Metrô, em dormitório emergencial para até 400 moradores de rua a partir das 20 horas. Para o transporte, a Prefeitura disponibilizou vans que saem da Sé e levam até o equipamento estadual. Entretanto, o serviço havia atendido pouco mais de 50 pessoas na noite anterior.

Às 20h40 desta quinta, também havia mais colchões vagos do que ocupados. "As pessoas passaram a noite aqui, ficaram bem acomodadas, aquecidas e se alimentaram com a alimentação do Bom Prato", avaliou a secretária estadual Célia Parnes, de Desenvolvimento Social. "A demanda tende a crescer, especialmente porque teve um acréscimo grande da população em situação de rua durante a pandemia."

Sem casa há cinco anos, o carpinteiro Armando dos Santos, de 57, foi pela primeira vez ao dormitório provisório. "Fiquei sabendo por um colega mais cedo e concordei na hora", afirma. Morador de São Paulo desde a década de 1980, ele é natural de Piripiri, cidade pequena do Piauí. "Nunca me acostumei com o frio. No calor, durmo tranquilamente na rua… Agora mesmo eu estava todo me tremendo lá fora."

Já o funileiro automotivo José Araújo, de 52 anos, já havia passado a noite anterior no Metrô. "Pensei que hoje iria ter mais gente, mas o pessoal fica lá em cima para pegar as doações", diz. "É claro que aqui não tem um banheiro, uma TV, mas é bom. A gente é muito bem tratado, tem comida, colchão. Como isso não é melhor do que dormir embaixo de uma árvore?"

Estadão
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