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Cidades

Como Tóquio, sede das Olimpíadas, pode inspirar cidades brasileiras

Capital do Japão apostou em infraestrutura existente para receber os Jogos Olímpicos; obras de drenagem e ampla malha de transporte sobre trilhos são referências internacionais

25 jul 2021 - 05h10
(atualizado em 27/7/2021 às 15h04)
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Quem não se lembra do Ninho do Pássaro ou do Cubo D'Água das Olimpíadas de Pequim? Ou das grandes obras de infraestrutura prometidas para o Rio? A própria Tóquio se projetou ao mundo como reconstruída, tecnológica e moderna nos jogos de 1964, especialmente pelo novíssimo trem bala.

Quase 60 anos depois, a capital do Japão não repetiu mudanças urbanas tão significativas ao voltar a sediar os Jogos Olímpicos. A aposta principal foi na melhoria de estruturas e sistemas já existentes, acostumadas ao fluxo dos 37 milhões de habitantes da região metropolitana.

Poucos lugares no mundo poderiam tomar uma decisão semelhante. Embora a motivação seja em grande parte econômica, a otimização de espaços e ações somente foi possível por envolver um lugar com grande e variada rede de mobilidade, espaços esportivos em uso e ações diversas.

"Em Tóquio, senti que é possível ser uma cidade densa, caótica e que tem qualidade de vida. Isso depende de uma série de coisas, como noção de espaço público muito diferente da nossa, vontade política, investimento", comenta a pesquisadora de arquitetura japonesa e urbanista Marina Lacerda.

Embora tenha características distintas de grandes cidades latino-americanas e europeias, alguns aspectos se tornaram referência internacional. Entre eles, o transporte coletivo, a prevenção a enchentes e a relação da população com o espaço público.

Diretor regional em Tóquio do Instituto de Engenharia e doutor em planejamento de transportes, Sideney Schreiner diz desconhecer uma cidade grande que funcione como Tóquio. "É quase um relógio suíço."

Mobilidade

O maior destaque é a multimodalidade, que é o uso de mais de um meio de transporte em um mesmo trajeto, como metrô, trem, ônibus, caminhada, bicicleta e outros. Nas estações, é comum haver grandes bicicletários. No caso das vias expressas para automóveis, pedágio urbano é cobrado para desestimular o tráfego.

A malha de transporte sobre trilhos atrai grande parte da população. Ela reúne mais de uma centena de linhas de metrô e trens urbanos na região metropolitana, destaca Schreiner.

Em paralelo, há uma preocupação com uma melhor orientação de moradores e visitantes em meio a uma rede de transporte que um desconhecido poderia considerar impossível de compreender. Há placas, totens e afins de sinalização em grande quantidade, com informações geralmente em quatro idiomas: japonês, chinês, coreano e inglês.

A arquiteta e urbanista Simone Neiva, que cursou mestrado na Universidade de Tóquio, também comenta sobre o metrô. "Todo mundo usa, de todas as classes e idades. No horário de pico, é mais cheio e, mesmo assim, você vê as pessoas carregando livros, lendo mesmo no metrô lotado", comenta. Por outro lado, os assentos são acolchoados, proporcionando mais conforto.

Outra característica da mobilidade é que muitas vias não têm uma calçada construída e, portanto, o espaço do pedestre é traçado com linhas pintadas nas laterais da faixa de rolamento. "A rua é compartilhada entre o pedestre e o carro", comenta Simone, o que exige também uma segurança no trânsito diferente da vista em cidades brasileiras.

O engenheiro Schreiner também salienta a preocupação em se preparar para desastres naturais extremos, tanto no treinamento e orientação da população quanto nos sistemas de alerta, na formação de profissionais e nas obras de contenção, como comportas para evitar alagamentos em trilhos, por exemplo. "Aqui tem terremoto, tufão, vulcão, maremoto, vendavais, temporais, só não tem Godzilla", comenta.

Drenagem

Nesse aspecto, uma construção que costuma chamar a atenção é um grande sistema de drenagem subterrâneo em Kasukabe, na região metropolitana, a 50 metros de profundidade e com 6,3 km de comprimento, que recebe as águas de rios pequenos e médios. O local chega até mesmo a se transformar em atração turística nos períodos sem chuvas intensas.

Schreiner explica que o sistema funciona quase como um gigantesco piscinão, recebendo as águas das chuvas quando em maior intensidade. "Eles têm uma visão clara do impacto de uma obra dessas na redução das perdas materiais e de vidas. Grande parte da cidade está construída entre rios, com algumas áreas abaixo do nível deles", justifica.

Ele pondera, contudo, que as adaptações para a realidade de uma cidade brasileira não são fáceis. "É muito difícil e simplista falar em transferir as soluções de Tóquio para qualquer lugar no mundo, porque não vai ter essa densidade, essa economia, esse PIB. Aqui, tudo se torna viável, existe uma avaliação de custo e benefício social", comenta. "Aqui, a economia consegue sustentar esse tipo de obra."

Sustentabilidade

Do ponto de vista cultural, Sideney Schreiner também destaca o não desperdício (de tempo, alimento, energia, o que for) e a realização de manutenção e atualização frequente em construções. Isso dialoga também com o conhecido cuidado que em geral se tem com os espaços públicos e o hábito de descartar lixo apenas em locais adequados.

Tóquio firmou um compromisso de tornar neutras as emissões de carbono até 2040, enquanto a meta nacional do Japão é 2050. "Há um direcionamento muito forte de todos os projetos mesmo nos que não são divulgados internacionalmente no sentido de priorizar ações de sustentabilidade", conta o engenheiro, que é diretor de projetos em uma empresa que atua no País.

Professor visitante na universidade Tokyo Tech, o arquiteto e urbanista Gabriel Kogan comenta que há um esforço local para a reciclagem e destinação correta do lixo. Porém, a produção de resíduos não passa por um processo de desestímulo, gerando portanto um grande volume diário que precisa ser reaproveitado ou incinerado.

Também pondera que a cidade tem características a serem valorizadas e, ao mesmo tempo, outras que poderiam ser chamadas de antiexemplo de urbanismo e sustentabilidade, tais como o sistema de rios enterrados, com bombeamento no subsolo. "É um sistema caro de ser mantido. Você ouve o barulho da água correndo debaixo do asfalto."

Organização urbana

Pesquisadora de arquitetura japonesa, a urbanista Simone Neiva conta que o traçado das ruas de Tóquio não é linear como em capitais latino-americanas e europeias. Por isso, é comum que turistas tenham até a sensação de estar em um labirinto ao percorrer as vias.

Outra distinção é que a capital japonesa é mais multicentralizada, com uma grande concentração de comércios e serviços no entorno de estações de metrô. "As nossas cidades, algumas, também têm múltiplos centros, mas sempre tendem a ter um com mais força. Em Tóquio, essas forças são equilibradas", aponta.

Ela descreve a capital japonesa como de uma vivacidade muito grande, na qual, a população é habituada a utilizar os espaços fora da residência para fins diversos, enquanto o lar se torna um lugar para descanso. Além disso, há um convívio entre espaços mais tradicionais e outros contemporâneos. "Tem várias pequenas lojas, casinhas de chá com duas mesas na calçada, também tem esse tipo de coisa mais tradicional. Tem a casa de saquê e, do lado, uma loja de tecnologia."

A pesquisadora Marina Lacerda também fala neste contraste. "A paisagem parece uma colagem de tempo. Você está caminhando e, de repente, vê um templo. Na rua seguinte, tem muitos luminosos dos anos 70 e 80. Já, na outra, vê elementos mais contemporâneos, de vidro, e a madeira, que ainda é muito utilizada."

Estadão
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