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A luta de família palestina para vencer doença genética rara registrada pela 1ª vez no Brasil

Casal de primos de primeiro grau descobriu que filhas têm doença causada por mutação existente em poucas famílias no mundo; após perder a primeira, eles correm contra o tempo para salvar a segunda.

12 dez 2017 - 10h49
(atualizado às 10h55)
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Após perder a primeira filha, casal muçulmano tenta fertilização in vitro para ter bebê que possa doar medula para a segunda | Foto: Arquivo pessoal
Após perder a primeira filha, casal muçulmano tenta fertilização in vitro para ter bebê que possa doar medula para a segunda | Foto: Arquivo pessoal
Foto: BBC News Brasil

Nasser Talal Abu Allan não queria se casar com sua prima de primeiro grau, Remal, que vivia na Palestina. Seus pais, também primos, foram prometidos na terra natal e se casaram no Brasil nos anos 1970. Nasser, nascido no Brasil, e a prima, recusavam a ideia de um casamento arranjado entre primos, comum na família.

"A gente não gostava da ideia, mas é assim que Deus faz as coisas. Acabamos gostando um do outro e resolvendo casar", relembra, rindo timidamente.

Mas a família ainda não sabia que carregava uma mutação genética rara, causadora de uma grave doença imunológica. Nem que esta mutação se propagava com mais eficiência na cidadezinha de cerca de 20 mil habitantes, próxima a Hebron, por causa dos casamentos constantes entre primos.

A descoberta veio quando a primeira filha de Nasser e Remal, Rania, teve uma infecção de ouvido aos dois meses de vida. Os exames médicos mostraram uma contagem muito baixa de células de defesa, mas demoraria muito até que os pais conseguissem entender o que exatamente estava acontecendo com a filha.

A odisseia da família para diagnosticar a tratar a condição - uma neutropenia grave - tornou-se o centro de uma pesquisa genética sobre a doença no país. Foi o primeiro caso diagnosticado no Brasil.

Enigma

Quando Rania completou 3 anos e meio, levá-la todos os meses para ser internada já era comum na vida do casal palestino. Mas nenhum dos exames genéticos feitos para tentar descobrir a origem do problema dava resultado.

A investigação avançou quando Nasser recebeu a visita de um tio da Palestina, casado com uma prima mais distante, que havia perdido as três filhas para uma doença muito semelhante - a criança que mais viveu chegou apenas aos 4 anos de idade.

Família palestina tem costume de casamento entre primos próximos, o que facilita a propagação de mutação genética rara
Família palestina tem costume de casamento entre primos próximos, o que facilita a propagação de mutação genética rara
Foto: Thinkstock / BBC News Brasil

"Naquela época a tecnologia ainda não estava descobrindo tanta coisa. Aí começamos a ver que tinha algo errado, porque ele disse que as filhas dele passaram pela mesma coisa. Aprendemos a cuidar melhor da Rania", relembra.

A história do tio, cujas filhas chegaram a ser tratadas por médicos israelenses, aumentou a suspeita de que a raiz da doença estava na genética da família.

A confirmação da ciência, no entanto, só chegou anos mais tarde, em setembro de 2013, e por coincidência.

"A família tinha ido se consultar comigo e fizemos o sequenciamento de todos os 22 mil genes da Rania. Mas não tínhamos encontrado nenhuma das mutações descritas que pudesse causar a neutropenia", disse à BBC Brasil o imunologista João Bosco de Oliveira Filho, diretor da Genomika, uma das principais clínicas genéticas no país.

Poucos meses depois, o médico estava em um congresso nos Estados Unidos quando um grupo de cientistas apresentou um novo estudo, mostrando a ligação entre uma mutação no gene VPS45A e um tipo grave de neutropenia.

"Me sentei ao lado do colega que havia participado do estudo e abrimos, no meu celular, os resultados do genoma da Rania. Foi aí que encontramos a mutação."

Àquela altura, a menina já ouvia dos pais que sua doença provavelmente veio deles e "estava dentro dela".

Segundo os médicos, sua melhor chance de cura estava em um transplante de medula - que poderia restaurar a produção de células do sistema imunológico.

Em meio à busca pelo tratamento, o casal engravidou novamente, sem planejar, de Mariah. Ainda na barriga da mãe, os médicos descobriram que ela tinha a mesma mutação da irmã.

Mutação genética que causou doença em Rania só foi descrita por pesquisadores em 2013 | Foto: Arquivo pessoal
Mutação genética que causou doença em Rania só foi descrita por pesquisadores em 2013 | Foto: Arquivo pessoal
Foto: BBC News Brasil

'Incansáveis'

Segundo o catálogo Online Mendelian Inheritance in Man (OMIM), o mais abrangente compêndio de genes humanos e distúrbios genéticos já conhecidos, existem nove tipos de neutropenia congênita.

"A neutropenia que a família de Nasser tem é tipo 5, muito severa", explica o geneticista Ciro Martinhago, que diagnosticou a segunda filha do casal.

O OMIM cita apenas quatro estudos sobre crianças de famílias palestinas e marroquinas com casamentos consanguíneos, que tinham a mutação genética e desenvolveram a doença. Uma delas é justamente a família do tio de Nasser.

"O fato de que a mutação foi encontrada em outras famílias daquela região é o que chamamos de efeito fundador. Significa que naquela população há uma probabilidade maior de essa mutação ocorrer", diz Martinhago.

Um estudo sobre o caso de Nasser ainda está sendo preparado por pesquisadores brasileiros.

O gene VPS45 codifica uma proteína associada à liberação de neutrófilos, células que mediam as inflamações no organismo. Uma mutação nele pode fazer com que diminua drasticamente o número de células de defesa das crianças afetadas.

No caso de Rania, a mutação fez com que ela tivesse outras alterações graves, além da neutropenia. Ela chegou a ter mielofibrose (fibrose e perda de função da medula óssea) e também problemas nos rins, segundo a onco-hematologista Juliana Folloni, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, que acompanhou o caso.

"Muita coisa sobre essa doença ainda não é entendida. Dentro dos tratamentos conhecidos, o transplante é o único que pode funcionar. Mas há pouquíssimos feitos no mundo nesses casos, então até mesmo o transplante é considerado algo experimental", disse à BBC Brasil.

De acordo com Folloni, um estudo que será publicado em breve mostra que, dos sete transplantes de medula feitos em pacientes com esta mutação genética, só dois já conseguiram mudar para melhor o quadro.

Casal tenta a primeira seleção de embriões feita no Brasil para a neutropenia causada pela mutação do gene VPS45A
Casal tenta a primeira seleção de embriões feita no Brasil para a neutropenia causada pela mutação do gene VPS45A
Foto: Thinkstock / BBC News Brasil

A peregrinação das famílias para conseguir diagnóstico e tratamento para doenças raras não é incomum, de acordo com os médicos. Mas o caso da família de Rania surpreende pelo ineditismo da condição.

"O que chama a atenção neles é a perseverança, na verdade. Eles não desistem, são incansáveis", diz Folloni.

Esperança

Rania tinha oito anos quando morreu, em 2015. Apesar da esperança dos pais e dos médicos, ela sofreu de uma complicação após o transplante de medula.

"Ela lutou muito. Três meses no hospital não é para qualquer um não. Cada minuto, cada dia que vivenciamos foi um sofrimento", diz Nasser, emocionado.

"Ao mesmo tempo, as fotos que tiramos juntos mostram que foi uma das melhores épocas da minha vida com a minha filha. A gente se divertiu muito. Parece que Deus disse: 'aproveita, que tenho que chamar sua filha de volta'."

O casal, que não era praticante do islamismo xiita, como os pais, se aproximou da religião após a morte de Rania. Eles afirmam que não houve restrição religiosa para fazer o processo de seleção genética e tentar, pela fertilização in vitro, ter outros filhos sem a mutação.

Eles também esperam conseguir gerar um bebê que possa doar a medula para Mariah, com mais chances de sucesso.

"A gente tentou duas vezes, e o bebê não pegou. Eu vou tentar, mas eu tenho medo, não vou mentir para você. Atualmente, é a única chance da minha filha."

Rania chegou a fazer um transplante de medula, mas sofreu uma complicação e morreu após a operação | Foto: Arquivo pessoal
Rania chegou a fazer um transplante de medula, mas sofreu uma complicação e morreu após a operação | Foto: Arquivo pessoal
Foto: BBC News Brasil

Após as tentativas de ter meninas, o casal teve dois filhos gêmeos, Yahia e Yuniz. Ambos livres da mutação genética da família, mas não 100% compatíveis como doadores de medula para Mariah - as chances são maiores com uma criança do mesmo sexo.

Eles pretendem esperar pelo menos mais um ano e meio, até que os meninos estejam maiores, para tentar mais uma vez o processo de seleção de embriões e a fertilização.

Mariah, porém, têm apresentado mais problemas decorrentes da neutropenia do que sua irmã.

"O sentimento é difícil. Tem dias que a gente está esperançoso, querendo que as crianças cresçam bem, com saúde. Tem dias em que você queria que tudo acabasse logo", afirma Nasser.

A confirmação de que Yahia e Yuniz nasceram, de fato, sem a mutação do gene VPS45A deu esperanças ao tio de Nasser, que deseja ter outros filhos, após a perda das três crianças. Ele e a mulher pretendem vir ao Brasil fazer o mesmo processo.

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