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'A gente se sente jogado às traças': os relatos da fila do desemprego no Rio em crise

15 mar 2017 - 19h17
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Fila diária na Superintendência Regional do Ministério do Trabalho, no Centro do Rio
Fila diária na Superintendência Regional do Ministério do Trabalho, no Centro do Rio
Foto: BBC Brasil / BBC News Brasil

Meia hora antes de as pesadas portas de ferro se abrirem, mais de 50 pessoas aguardavam na fila do desemprego na Superintendência Regional do Ministério do Trabalho, no Centro do Rio, e protegiam-se como podiam do sol - que, às 8h, já era inclemente - usando guarda-chuvas ou erguendo sobre o rosto as pastas de plástico em que levavam seus currículos.

Com o desemprego tendo chegado à taxa recorde de 12,6%, segundo o índice mais recente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a rotina se repete nos postos de atendimento vinculados ao Ministério do Trabalho Brasil afora.

No Rio, trabalhadores esperavam para solicitar seu seguro-desemprego, mas a maioria chegou cedo na esperança de conseguir uma oportunidade de trabalho através do Sistema Nacional de Emprego (Sine), serviço que faz a intermediação entre pessoas que procuram emprego e empresas ofertando vagas.

No dia em que greves e protestos contra as reformas propostas pelo governo Temer ocorrem no país todo, a BBC Brasil acompanhou a fila do desemprego e conversou com pessoas que estão há até dois anos procurando trabalho.

No Rio, em meia à grave fiscal do governo estadual, a taxa de desemprego atingiu seu nível recorde e está acima do índice nacional, tendo chegado a 13,4% no fim do trimestre que se encerrou em dezembro.

Das obras olímpicas para o isopor

'Eles (os envolvidos com a corrupção) estão cheios de dinheiro, iate, joias, comendo camarão como se fosse biscoito Piraquê. E a gente caçando emprego', afirma Flávio
'Eles (os envolvidos com a corrupção) estão cheios de dinheiro, iate, joias, comendo camarão como se fosse biscoito Piraquê. E a gente caçando emprego', afirma Flávio
Foto: BBC Brasil / BBC News Brasil

Até pouco tempo atrás, arrumar emprego estava fácil para o bombeiro hidráulico Flávio da Silva de Andrade. Com a forte demanda que a Copa do Mundo e a Olimpíada impuseram ao ramo da construção civil, ele trabalhou na reconstrução do Maracanã, nas obras do Parque Olímpico e na Linha 4, que levou o metrô da zona sul carioca à Barra da Tijuca.

Os consórcios responsáveis pelas três obras foram liderados pela Odebrecht.

O bombeiro está desempregado desde outubro, quando passou dos túneis no subterrâneo para um isopor na calçada da rua Buenos Aires, no Centro do Rio, onde vende água e refrigerante para tentar fechar as contas do mês. "Todo mundo já sabe o que aconteceu, né? Uma roubalheira danada. O setor de construção civil está todo parado."

Antes, levava coisa de 20 dias para começar um novo emprego. "Era o tempo de fazer a documentação e os exames". Agora, ele está no seguro-desemprego desde dezembro - diz nunca ter ficado tanto tempo sem conseguir trabalho. Saber dos desvios das obras por onde passou aumentam a amargura.

"Eles (os envolvidos com a corrupção) estão cheios de dinheiro, iate, joias, comendo camarão como se fosse biscoito Piraquê. E a gente caçando emprego", revolta-se. "A gente se sente jogado às traças. Vai de um lado para o outro para ver se tem vaga e não tem nada. Aí acaba se submetendo a um salário abaixo da profissão."

Flávio diz ter 39 anos "bem vividos": "Tenho três filhos e já sou até avô." Cada filho é de uma mulher diferente, e o dinheiro tem que render para redistribuir um pouco para as três. "Porque se não pagar pensão alimentícia... isso sim dá prisão no Brasil."

Sonho do emprego público malfadado

'O Estado está uma porcaria. Promete, mas não cumpre. O dinheiro está preso por causa da dívida pública, e fica todo mundo sem receber', conta Deusimar
'O Estado está uma porcaria. Promete, mas não cumpre. O dinheiro está preso por causa da dívida pública, e fica todo mundo sem receber', conta Deusimar
Foto: BBC Brasil / BBC News Brasil

O futuro parecia seguro quando Deusimar Resende, de 49 anos, conseguiu um emprego público, há três anos.

Ela foi contratada como professora pelo Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), onde dá aulas para jovens infratores do 1º ao 5º ano do ensino fundamental.

"Trabalhar para o Estado era uma coisa certa, né? Parecia um emprego garantido", lembra. Porém, com a crise financeira no governo estadual do Rio, "a situação está uma bagunça". Ela diz que os atrasos salariais começaram em outubro, e o último pagamento que recebeu foi o de dezembro - que só entrou em janeiro.

"O Estado está uma porcaria. Promete, mas não cumpre. O dinheiro está preso por causa da dívida pública, e fica todo mundo sem receber."

Seu marido vem sustentando a casa, mas para ele a situação também está "uma bomba": é taxista, trabalho que hoje em dia "não está dando mais nada" por causa da concorrência dos aplicativos de transporte.

"A situação está muito difícil. Minhas contas estão atrasadas, estou com dívidas. Tenho que arrumar outra fonte de renda." Por isso, Deusimar agora busca um emprego na área privada. "Pelo menos aí sei que vou receber em dia."

Ela gostaria de conseguir trabalho em uma escola particular e continuar no Degase, onde o dia a dia dando aulas para menores infratores é difícil. Enquanto ensina, dois guardas ficam postados na porta da sala de aula para garantir a segurança.

"Os meninos estão acostumados com rua e não com regra, né? Então você tem que ser um pouco de tudo - psicóloga, mãe e professora."

Peregrinação diária com currículos

'A gente não pode desistir. Porque se mesmo procurando está difícil, imagina se nem procurar', diz Claudiana
'A gente não pode desistir. Porque se mesmo procurando está difícil, imagina se nem procurar', diz Claudiana
Foto: BBC Brasil / BBC News Brasil

Há um ano e três meses a rotina de Claudiana Almeida dos Santos, de 34 anos, é procurar emprego. Toda semana ela volta ao Sine para ver se surgiram novas vagas, e deixa cópias de seu currículo em agências de empregos, lojas e empresas. "Já virei o Rio de Janeiro todo", diz.

Se juntou a outras amigas desempregadas para peregrinações coletivas. Semana passada, por exemplo, foram ao bairro de São Cristóvão bater na porta de fábricas para deixar seus currículos. Ela busca emprego como copeira, em fábricas, laboratórios, "o que pintar".

"O importante é estar de carteira assinada e ter um salário garantido", diz. Enquanto isso, faz bicos, cobre férias e frequenta cursos de informática e de auxiliar de administração oferecidos gratuitamente pelo Sesi e pelo Senac.

Nascida e criada em São Luís, no Maranhão, Claudiana veio para o Rio aos 20 anos atrás de emprego. O primeiro foi como camareira em uma grande rede hoteleira. Trabalhando de dia e estudando de noite, concluiu o 8º ano e o ensino médio.

Seu último emprego foi em uma fábrica de ampolas de vidro para laboratórios, na zona norte do Rio. "Por causa da crise econômica, a fábrica fechou e mandou todo mundo embora. Éramos mais de cem pessoas, alguns com 40 anos de casa. Eu trabalhava na linha de produção. Era muito bom. Pagava direitinho e eu tinha todos os benefícios (trabalhistas)."

O que Claudiana gostaria mesmo é de trabalhar na área industrial. "Mas está muito difícil. Estão mandando embora mais do que contratando." O jeito, diz, é continuar tentando. "A gente não pode desistir. Porque se mesmo procurando está difícil, imagina se nem procurar."

'O pobre faz o rico mais rico. O rico faz o pobre mais pobre'

'Aqui é a assim. O pobre faz o rico mais rico. E o rico faz o pobre mais pobre', diz Ronaldo
'Aqui é a assim. O pobre faz o rico mais rico. E o rico faz o pobre mais pobre', diz Ronaldo
Foto: BBC Brasil / BBC News Brasil

Ronaldo do Nascimento está há dois anos desempregado, depois de ter trabalhado durante um ano e meio como guarda de trânsito.

Ele era um dos agentes municipais apelidados de "verdinhos" no Rio, mas foi mandado embora junto com outros 240 colegas. Já distribuiu mais de 350 currículos Rio afora - mas nada.

Acha que a idade atrapalha - mas dá "graças a Deus" por ter chegado aos 57 anos. "Porque quase ninguém chega na minha idade. Antes vira vagabundo e morre."

Ele tira uma página impressa da bolsa desbotada: o currículo inclui sua foto 3x4, o registro de ensino fundamental completo e uma breve descrição de seus objetivos profissionais, na qual afirma estar "sempre disponível a aprender e desempenhar o trabalho da melhor forma possível".

A única experiência profissional listada é a de guarda de trânsito, mas Ronaldo diz trabalhar desde os 9 anos, quando começou a carregar cimento e tijolo em obras. "Eu tinha que ajudar a minha mãe. Não tinha mais quem ajudasse."

Ele tem dois filhos e mora com a irmã, que vem segurando as pontas, pagando o aluguel do apartamento que dividem no bairro do Catumbi, do lado do Centro.

Ronaldo busca trabalhar com "o que aparecer". "Pode ser de acompanhante, caseiro. Também sei trabalhar na cozinha, fazer comida. Aprendi com mamãe."

Ele se revolta ao falar da corrupção e da estrutura social no Brasil. "Aqui é a assim. O pobre faz o rico mais rico. E o rico faz o pobre mais pobre."

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