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A mulher de 50

O mundo de cabeça para baixo justo no meu aniversário de 50 anos? Imagino que, neste ano, adolescentes que iriam se formar pensaram assim sobre suas formaturas de escola, formandos de faculdade também, noivas idem

2 ago 2020 - 03h10
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E o mundo parou em março e, dentro da pequenez de certos pensamentos a que quase todos os humanos são reféns, eu me pegava com pena de mim. O mundo de cabeça para baixo justo no meu aniversário de 50? Imagino que, neste ano, adolescentes que iriam se formar pensaram assim sobre suas formaturas de escola, formandos de faculdade também, noivas idem. Diferentemente de outros eventos, fazer 50 anos não seria necessariamente uma data de sonhos para se comemorar em voz alta. Bem, na minha cabeça, era sim.

Há tempos, programei fazer uma viagem de vida e tirar um mês de férias durante a data (algo que não me lembro se já fiz algum dia na minha vida adulta): iria para Cornualha, região ao sul do Reino Unido que foi habitada por celtas. Tenho ascendência escocesa por parte de mãe e, na área mais criativa do meu cérebro, sinto-me uma guerreira celta. A cada semana de moda inglesa que participava, quando o avião estava chegando ao Reino Unido e eu, pela minha janela, avistava o continente, suas muralhas de pedras e praias geladas, acomodava-me na minha poltrona e imaginava minha chegada à Cornualha. Quem sabe, pensava, largaria tudo e moraria ali, como a personagem de Os Catadores de Conchas, da britânica Rosamunde Pilcher.

A cada semana de moda, a própria moda me sugava e eu, feliz e atordoada, seguia mais longe da Cornualha e mais perto do meu trabalho. Mas 2020 chegou e planos seriam realizados: estaria cinco quilos mais magra por sugestão médica para minha idade e altura, chegaria a Londres e pegaria um trem. Iríamos, eu e meu marido, Fernando, para o sul em dias de leitura, conversas a dois e paisagens pelo interior da Inglaterra até chegar ao mar, onde alugaríamos uma pequena casa e moraríamos nela por um mês. Lá, eu completaria meio século de vida. Tentaríamos ser locais e eu, claro, me sentiria em casa, já que por dentro carrego ao menos uma gota de sangue inglês.

Mas março de 2020 nos pegou a todos de surpresa e a vida no "País das Maravilhas" me pediu para acordar. E acordei. Acordei e olhei profundamente para meus quase 50, para minha vida, para o Brasil, para meu trabalho e tudo que teria que ser transformado, e para a palavra do momento, ressignificado, atribuindo assim um novo significado a acontecimentos por meio da mudança de visão que tinha do mundo. Nos primeiros dois meses, admito, a Cornualha continuava em meus sonhos como símbolo externo de uma mudança que teria de ser interna (nada contra sonhos! Eu ainda vou para Cornualha um dia, sim). Mas, mesmo a partir do primeiro dia, a mudança foi estabelecida por imposição do mundo. Dor na despedida de funcionários que eram parte da minha história, dor no cancelamento de muitos dos nossos eventos, de todas as viagens, semanas de moda, dor ao ver a dor do mundo, de pessoas próximas e distantes e a dor do Brasil. Mesmo sabendo que muitas vezes crescemos através da dor, ela nunca é bem-vinda quando aparece.

A Alice de cabelos pretos, milimetricamente cortados a cada mês e com looks estrategicamente montados para uma mulher de moda, deu lugar a uma mulher de cabeleira grisalha e longa que, presa em um coque, me oferece uma nova visão de mim mesma. Minha paixão por moda não diminuiu, mas o tempo gasto na composição de looks, sim. O olhar mais atento e focado viu detalhes em cada peça e valorizou mais sua qualidade, manufatura, história e intenção.

Devo dizer também que o significado e a alegria de fazer 50 só aumentou. Foi repensado, e cresceu na minha "bolsa de valores" da idade. A ansiedade e o volume inesgotável de energia que me atrapalhavam e me confundiam aos 30, o medo que tive ao fazer 40 e realmente ter de abrir mão de ter mais filhos, aliado ao receio de me tornar uma senhora e de perder o olhar de desejo do meu marido por atingir a meia idade, deram espaço a esse lugar da mulher de 50.

Energia com foco, força com menos ansiedade, um estado de aceitação pacífica de certos limites que a vida e a natureza nos impõem e o entendimento de onde ainda é meu lugar e onde quero estar. Sinto meu cérebro mais ágil, coerente e disciplinado por anos de vida, dores, alegrias, trabalho, leituras e estudos, como um músculo preparado, que agora me devolve em um raciocínio mais articulado e lógico, fazendo com que me entenda melhor e, assim, entenda o outro.

A fé inabalável que sempre tive mudou o foco do pedir para agradecer. O tal colágeno diminui sim, mas garanto que a sensualidade aumentou. E os cabelos brancos, que por pintar desde os primeiros fios eu nem sabia quantos eram? Agora sei que são muitos, ando encantada com eles e eles por mim. Não posso garantir que não vou pintar novamente, mas se pintar é certo que será algo consciente e não feito no modo automático.

Espero uma próxima década repleta de realizações intensas. Olho para meus pares e tenho imensa alegria ao ver mulheres da minha geração em postos de liderança, como a nova CEO do New York Times, Meredith Kopit; Sheryl Sandberg, CEO do Facebook; a CEO da Lacoste no Brasil, Raquel Maia, além da estilista inglesa, Stella McCartney. Uma geração de mulheres que desafiaram a história que nos foi contada sobre a menopausa como um lugar de retirada, que nos colocava em segundo plano na vida.

A Cornualha vai acontecer quando a vida permitir. Os 50 vão chegar esta semana e eu estarei no Brasil, trabalhando muito, com energia e em pleno exercício mental, sem abrir mão do jantar de comemoração com vinho e massa. Os quilos que meu médico pediu vão ter de esperar mais um tempo. A vida tem me indicado um novo caminho e estou, como ficava no dia anterior das festas do colégio (principalmente quando fui noiva da festa junina ao completar 10 anos) cheia de expectativa, alegria e desejo de viver o momento.

Estadão
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