Isabel Fillardis relembra episódios de preconceito na TV: ‘Era tudo silenciado, era temeroso falar de racismo’
Em entrevista exclusiva ao Terra, multiartista relembrou sua trajetória e falou sobre show 'Pretas do Brasil', que homenageia ícones negros
Nem mesmo o melhor dos astrólogos conseguiria prever a vida de Isabel Fillardis. A multiartista, atualmente com 52 anos, já fez de tudo um pouco -- e, igualmente, passou por todo tipo de situação: realizou sonhos, ganhou prestígio, encarou provações e descobertas. Tudo isso e muito mais ela revisita em seu espetáculo musical Pretas do Brasil, no qual homenageia grandes nomes da música negra, como Elza Soares, Alcione, Sandra de Sá e Dona Ivone Lara. A turnê já passou por Brasília e Rio de Janeiro, e chega a São Paulo no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, no Teatro Sérgio Cardoso.
Para ela, o fato de o espetáculo ocorrer bem no feriado que celebra o legado de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do período colonial brasileiro e símbolo de resistência na luta contra a escravização e ao racismo, apenas dá contornos mais representativos a tudo.
“Pessoalmente e artisticamente, nesses últimos quatro, cinco anos, desde minha entrada no Pacto de Promoção de Equidade Racial, meu letramento ficou muito mais aprofundado. Fiz trabalhos em que precisei pesquisar sobre conceito racial dentro do recorte brasileiro, e sempre digo que a cada gole de saber vem um gole de poder, e a cada gole de poder há mais libertação. Porque, para caminharmos rumo à equidade racial, é necessário letramento, é necessário conhecimento da real e verdadeira história do povo negro neste país. Não é uma história fácil. Mas entendemos que nossos ídolos e nossos ícones foram abafados, apagados e retirados da história --sobretudo as histórias de conquistas e vitórias. E quando você detém esse conhecimento, isso te dá mais força para continuar e perpetuar isso para as futuras gerações.”
Isabel acredita que o movimento negro brasileiro conseguiu avançar bastante nas últimas décadas. Entretanto, reconhece que ainda há muito para se batalhar, e uma forma que ela encontrou de fazer isso é por meio de sua arte, seja na TV ou na música.
“As coisas estão mudando, aos poucos, porque estamos nos fazendo perceber, trazendo à tona toda a nossa construção e contribuição, não só para o Brasil, mas para o mundo. O berço da civilização é negro — e precisamos reconhecer isso trazendo a nossa história. O show traz muito disso. Eu exalto essas mulheres, trago não só as cantoras, trago filósofas e, de certa forma, enalteço todas que se sentem representadas” -- Isabel Fillardis
'Só tinha espaço para uma negra em cena’
Referência para toda uma geração, Isabel Fillardis nem sempre se viu nesse lugar de empoderamento. Nascida em 1973, ela começou a trabalhar cedo, aos 15 anos --o que considera algo positivo, pois ajudou a formar a artista que é hoje. Outra profissão que não fosse a voltada à arte nunca esteve nos planos. “Eu não escolheria diferente. Sempre fui muito intuitiva. Minha mãe sempre nos deixou livres para escolher o que queríamos ser. E eu dei muitos sinais de que escolheria a arte: eu dançava muito em casa, ouvia música, cantava tomando banho… eu era movida por música diariamente.”
Aos 15 anos, Isabel já trabalhava como modelo comercial. Em pouco tempo, assinou contrato com a Ford Models, uma das maiores agências do mundo, o que a levou a trabalhar na Europa. Em 1993, ao retornar ao Brasil, iniciou a carreira na TV. Diferente de muitas colegas negras, ela diz que teve a chance de interpretar personagens sem estereótipos. “A minha história na teledramaturgia é curiosa. Comecei fazendo a Ritinha, em Renascer, que não era empregada doméstica. Outras personagens que fiz tinham profissões e histórias próprias: fui fisioterapeuta, massoterapeuta, bancária, gerente de uma grande cadeia de lojas, advogada, juíza. Ainda que não fossem protagonistas, eram representativas. Era difícil uma mulher negra se ver nesses lugares.”
Mesmo assim, não passou ilesa pelo racismo. Ao falar do assunto, ela optou por explicar o funcionamento do sistema, que limitava a presença de atores negros na TV. “Na minha época era assim: fazíamos testes e era algo pré-estabelecido. Quantas negras iam? Cinco? Só uma passava. Era decidido que haveria apenas uma negra no projeto. Depois, queriam um ‘casal negro’. Era muito louco, porque, simplesmente, não havia espaço para nós na TV. As coisas começaram a mudar quando o mercado privado percebeu nossa força econômica, que éramos a maioria da população e o quanto consumimos.”
E se hoje existe compliance (conjunto de práticas que garantem que uma empresa cumpra leis, regulamentos, padrões éticos e políticas internas) e um frente ampla de defesa ao negro, antes ela considera que a lei não era ampla o suficiente para proteger artistas negros.
"Eu venho de uma época analógica, era tudo mais difícil porque as coisas aconteciam e era tudo muito silenciado. Nós não falávamos sobre racismo, era temeroso falar de racismo. Nós nem tínhamos lei direito ainda"
A fala é uma referência ao marco legal de 1989. "Era bem mais difícil de ser combatido na época porque não tínhamos legislação para isso."
Embora tenha atuado em diversos papéis de destaque na Globo e na Record, Isabel nunca protagonizou uma novela. Aos 52 anos, ela ainda não desistiu desse sonho --e garante estar pronta. “Tenho certeza de que hoje estou bem mais preparada para assumir esse lugar. Quando surgir, estarei pronta para abraçar.”
'Posar para a Playboy ajudou a me sentir desejável'
Após conquistar espaço na televisão, ainda nos anos 1990, Isabel Fillardis foi convidada a posar para a revista Playboy. Segundo a artista, inicialmente não aceitou a proposta por razões pessoais. Na época, tinha inseguranças em relação ao próprio corpo e receio quanto à repercussão das fotos. Com o intuito de negar a proposta, impôs diversas exigências para dificultar o acordo. Entretanto, após muita negociação, a publicação aceitou todas as condições, o que tornou a negativa impraticável.
“Eu não me via fazendo a revista. Coloquei todos os empecilhos possíveis --cachê, local, condições. Queria que fosse no Egito, e lá havia guerra. Então sugeriram a África, e acabamos indo para o Marrocos. A revista ficou linda”, relembrou.
Isabel estampou a revista em 1996, na época com apenas 23 anos e apenas três de carreira como atriz. Ela já modelava desde os 15, mas nunca havia feito um trabalho sensual e provocativo. Em busca de mais estabilidade, aceitou o convite principalmente por razões financeiras. Hoje, contudo, revisitando a memória, percebeu que a experiência foi muito além.
Apesar da relutância, segundo ela, o ensaio mudou a forma como se enxergava e ajudou na construção de sua autoestima, além de agregar em sua personalidade artística.
“Fazer a Playboy foi uma ruptura positiva. Eu tinha muito pudor. Fiz a revista por dinheiro, mas também para me desafiar. Era um processo interno, feminino, meu. Me ajudou a me enxergar como bonita e desejável"
Sobre o cachê, ela não revelou valores, mas lembrou bem como usou o dinheiro: “Comprei meu primeiro apartamento, para mim e para minha família. Minha casa própria.”
'Ser mãe atípica mudou meu modo de viver'
Depois disso, Isabel fez de tudo: novela, cinema, teatro e música. Foi premiada diversas vezes --atriz revelação no Prêmio TV Press por Renascer, melhor atriz no Troféu Raça Negra por Começar de Novo e recebeu o Prêmio Ubuntu de Cultura Afro por sua vida e obra. Em paralelo a isso, ainda constituiu família. Ela teve três filhos de seu primeiro casamento, com Júlio César Santos: Analuz (2001), Jamal Anuar (2003) e Kalel (2013).
Cada gestação trouxe um aprendizado. Jamal nasceu com Síndrome de West, um tipo de epilepsia que afeta o desenvolvimento neurológico; Kalel nasceu prematuro e em meio às demandas da maternidade, Isabel conta que se afastou da filha mais velha, laço que restabeleceu com ajuda da terapia.
“Hoje, consigo equilibrar melhor tudo isso, mas sigo aprendendo. Tornar-me mãe atípica mudou completamente meu modo de viver. As prioridades mudam, e quando você é mãe atípica, seu universo muda também. Entendi que precisava ter espaço para ser mulher, para ter meus silêncios, meus respiros. Isso é essencial. Muitas mulheres não têm rede de apoio --e isso é cruel.”
Com os filhos, Isabel conversa sobre questões raciais de forma adequada a cada idade, respeitando o tempo cognitivo de cada um. “Converso muito com minha filha, que tem 24 anos. Ela passou pelo período da revolta, da gana, e hoje equilibra melhor isso. Com o Kalel, de 12 anos, que é um menino negro de pele clara e tem TDAH, converso de outras formas, às vezes lúdicas, mas sempre com a verdade.”
Namorando o ator e produtor Well Aguiar há quatro anos, Isabel acredita que aprendeu a “dançar com a dor, sem fazer da dor o palco” e hoje usa suas vivências para transformar pautas difíceis em inspiração. “Venho construindo uma história para mostrar que qualquer mulher negra pode: sonhar, ocupar espaços, ser feliz, amar, ser amada, educar seus filhos --e também ter o direito de não ser mãe, de se respeitar.”
Para 2026, os planos são muitos: teatro, música e cinema. Em dezembro, Isabel começa a divulgar Sexa, longa em que interpreta uma mulher vivendo a maturidade ao lado de Glória Pires. “No filme, faço uma mulher de 50 anos que decide se conhecer, se permitir. Ela é bissexual, alegre, livre, sem amarras. Foi extremamente prazeroso e divertido --e eu nunca tinha trabalhado com a Glória, então estou ansiosa.”
