A longa distância que separa o mangue do pampa

por Marcelo Firpo


 
Há mais ou menos uns 4 anos, quando eu consegui entender o que o manguebit significava, eu tinha uma frase feita que não cansava de repetir pros meus amigos: cada cidade do Brasil deveria ter uma pracinha com uma estátua do Chico Science. Volta e meia eu dizia isso, mas com o tempo fui diminuindo, até porque ninguém mais aguentava ficar ouvindo sempre a mesma coisa. A frase voltou à minha cabeça agora, um pouquinho antes de começar esse texto, ligeiramente modificada: cada cidade do Brasil deveria ter um Chico Science. Ponto.

Buenas, como eu supostamente deveria ser o correspondente gaúcho da Manguenius, vou tentar me ater ao que entendo ou penso que entendo, fechando um pouco o foco da questã, como diria o Brizola: Porto Alegre precisava ter um Chico Science. Não é uma cidade ruim, entendam, só que de vez em quando se tem essa sensação esquisita de que as coisas por aqui não andam, apenas aparentam andar. A cena da cidade vive imersa no mito do eterno retorno. A cada 2, 3 anos se produz uma nova onda de bandas, e todo mundo fica superfeliz porque elas são ótimas, e agora sim nós vamos mostrar como somos bons, e vamos tomar o centro do país de assalto, amarrar nossos amplificadores no obelisco, essas coisas. Daí alguns vão morar no Rio, outros ficam por aqui, outros simplesmente somem, mas nada de muito espetacular acaba acontecendo. E aí ficamos todos muito chateados, que pena, eram bandas tão boas, essas gravadoras não entendem nada mesmo, aquilo lá em cima é uma máfia e... ei, olha só! Novas bandas! Puxa, como são boas! Agora sim, ninguém nos segura, blablabla...Já devo ter visto isso acontecer umas 5 ou 6 vezes, mas só agora começo a entender por que é sempre assim.

Não sei se foi pra descer o sarrafo na cena do meu próprio estado que o Adelson me convidou pra escrever na Manguenius, mas agora já era, vamos em frente. Por que não aprendemos com os nossos erros? Por que tivemos que esperar o manguebit nos mostrar como se faz uma cena de verdade? E como, mesmo depois do manguebit dar o exemplo, continuamos na mesma? Por mais que as bandas daqui sejam legais e se esforcem pra fazer um bom trabalho, é sempre cada um na sua, não existe um conceito aglutinador, nem alguém que proponha idéias, que mobilize, que desequilibre. O manguebit chegou lá (chegar lá = criar um som diferente, romper a barreira regional, atingir todo o Brasil e o exterior, produzir obras historicamente relevantes, gerar uma segunda e uma terceira geração saudável de bandas, mudar a atmosfera cultural do lugar, enfim, fazer a diferença) porque envolveu muito estudo e trabalho duro. Ninguém por aqui no sul parece muito preocupado em fazer uma mistura da boa, em pesquisar ritmos regionais pra juntar com pop, rock, eletrônica, o que for. As referências são todas restritas às garagens da Inglaterra e Estados Unidos, provavelmente sabemos mais do que rola por lá do que da nossa própria cultura.

O Brasil é um país voltado para o oceano, de costas para toda a América Latina, um país que ignora com orgulho olímpico toda a riqueza e a diversidade cultural dos seus vizinhos (ok, Shakira não vale). Pois bem, o Rio Grande do Sul é o estado mais castelhano do Brasil, o português falado aqui é o mais espanhol de todos, muitas vezes um tango fala mais ao nosso coração que um samba. Por que então não chamamos pra nós essa responsabilidade de integrar? Por que não misturamos nossos ritmos campeiros, como a milonga, com uma batida quebrada de jungle? Porque não pegamos emprestado uns tangos e devolvemos eles encharcados de samba? Por que não escrevemos letras inspiradas em Jorge Luis Borges, em Bioy Casares, em Erico Verissimo, Simões Lopes Netto, Mario Quintana? Por que ninguém nem eu faz idéia de como se toca o candombe uruguaio? Por que não existem pelo menos umas 5 bandas por aqui que tenham um gaiteiro na sua formação? (sanfoneiro, pra quem é pernambucano). Por que, por Deus, tão poucos percussionistas? Por que as bandas novas ainda não gravaram um tributo a Lupicinio Rodrigues? Por que ninguém regrava algum troço antigo do Kleiton e Kledir? Por que as pessoas em geral e os jovens em particular não têm o menor orgulho ou mesmo o mais ralo conhecimento do nosso folclore, dos nossos ritmos, da nossa música? Por que eles parecem tão desprezíveis assim, vistos de longe? Por que raios ninguém se dá conta que modernizar o passado é uma evolução musical?

Simples: porque não temos um Chico Science. Ainda.

P.S. especialmente dedicado aos músicos gaúchos leitores do Manguenius: se vocês não entenderam a provocação, pro diabo que os carregue.  

Marcelo Firpo é colaborador
da MangueNius em Porto Alegre



 
Outras matérias

 

  • Três anos sem Chico Science

  • Chico Science & Nação Zumbi (Fotos)