
Herman
Lent, 89 anos
O
inimigo número um do barbeiro
Autor
de 230 livros científicos e considerado a maior autoridade mundial
no estudo do inseto transmissor da doença de Chagas, o pesquisador
enfrentou a gripe espanhola e teve de deixar o País para fugir da
perseguição na ditadura militar
Viviane
Rosalem
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“Enquanto
eu tiver boa visão e as pernas em forma, o laboratório será
minha segunda casa”, afirma o cientista do Instituto Oswaldo
Cruz
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Aos
89 anos, o pesquisador Herman Lent mantém uma dupla jornada de trabalho.
Todos os dias, por volta das 8hs, ele sai de seu apartamento no
Jardim Botânico, zona sul do Rio, rumo ao laboratório de ciências
da Universidade Santa Úrsula, em Botafogo. Duas vezes por semana,
ele cruza a Avenida Brasil para chegar ao Instituto Oswaldo Cruz,
onde fica o dia inteiro com os olhos grudados no microscópio. Considerado
o maior especialista do mundo no estudo do barbeiro, inseto transmissor
da doença de Chagas, o cientista brasileiro não pensa em abandonar
tão cedo suas pesquisas. “Enquanto tiver boa visão e as pernas em
forma, o laboratório será minha segunda casa”, afirma.
Filho
de imigrantes poloneses – o pai, Hano, era joalheiro e a mãe, Ana,
dona-de-casa –, o pesquisador se formou em Medicina em 1934 pela
antiga Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Dos quatro irmãos de Lent, o caçula da família, apenas
uma está viva: Rosa, de 96 anos. O primogênito morreu aos 4 anos
de febre amarela. Na infância, Lent adorava brincar no quintal de
casa com bexiga de boi. “Era a bola daquele tempo”, diz. Aos 8 anos,
foi obrigado a ficar de cama para cuidar da gripe espanhola que
contraiu.
No
terceiro ano da universidade, Lent se interessou pela parasitologia.
Entusiasmado, procurou o então diretor do Instituto Oswaldo Cruz,
Carlos Chagas, na tentativa de aprofundar seus estudos. Por simpatizar
com o universitário, ele lhe concedeu uma vaga no curso de microbiologia
e parasitologia, destinado a médicos, químicos e enfermeiros, em
1931. “A única condição era trazer de casa o microscópio, que eu
pedi ao meu cunhado para comprar”, conta o cientista.
TORNOZELOS
Para chegar ao instituto, Lent apanhava três tipos de condução.
Primeiro, era a barca, de Niterói, onde morava, até o Rio. Na Praça
XV, subia num bonde que o levava até a estação da Leopoldina. Lá,
esperava o trem que o conduzia até Manguinhos, onde se localiza
o instituto de pesquisa. “Era divertido ver os homens escolhendo
os melhores lugares de onde pudessem observar o tornozelo das mulheres,
o máximo que conseguíamos ver na época”, lembra.
Após
o curso, em 1932, Lent passou a estagiar no setor de pesquisas do
instituto, mas só foi contratado em 1936. Ganhava um salário de
500 réis. Com Arthur Neiva, o primeiro a descobrir a existência
do barbeiro, inseto transmissor da doença de Chagas, ele deu início
ao seu estudo aprofundado da doença. Lent teve êxito em seu trabalho
até 1970, quando o então ministro da Saúde Francisco Rocha Lagoa,
nomeado no governo Médici, utilizou o Ato Institucional nº 5 para
perseguir os cientistas contrários ao regime militar. Lent sustenta
que o episódio foi uma vingança pessoal de Rocha Lagoa, que fora
contestado diversas vezes pelos pesquisadores na época em que presidira
o instituto. “Depois que ele revelou que sua administração estava
baseada no Pentágono, percebemos o quanto era incompetente”, afirma
Lent.
A perseguição,
que interrompeu a carreira de dez cientistas, foi batizada por Lent
de Massacre de Manguinhos. O pesquisador é autor de um livro, com
o mesmo nome, em que relata o ocorrido. Impedido de trabalhar em
instituições que recebessem auxílio do governo, Lent saiu do País.
“Tive que optar pelo exílio”, conta. Na Venezuela, em 1972, deu
aulas no curso de pós-graduação da Universidade de Los Andes. Sua
mulher, a química paraguaia Goya Rivarola, o acompanhou na viagem.
Os dois filhos, Roberto, hoje com 51 anos, e Suzana, 49, ficaram
no Brasil. “Nos correspondíamos por carta, telefone e tentávamos
nos encontrar uma vez por ano”, conta.
Em
1974, Lent passou nove meses em Nova York, onde escreveu a tão sonhada
monografia, na qual relatava todos os tipos de barbeiro existentes.
O estudo faz parte de uma das 230 publicações do cientista, que
inclui um completo atlas bilíngüe sobre os vetores da doença de
Chagas na América. No mesmo ano voltou ao Brasil e recebeu convite
do reitor da Universidade Santa Úrsula, Carlos Postch, para retomar
suas pesquisas. “Pedi logo um laboratório para mim”, conta.
Quando
a Santa Úrsula firmou convênio com o Instituto Oswaldo Cruz, Lent
passou a se dividir entre o novo e o velho ambiente de trabalho.
Ele lamenta que a profissão de cientista no Brasil esteja tão desvalorizada.
“Os estudantes e profissionais acabam abandonando a ciência para
ganhar mais dinheiro em outros empregos”, diz.
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