
Mariuccia
Iacovino, 87 anos
A
amiga do maestro Villa-Lobos
Após
assinar documento pela paz ao lado de Cândido Portinari e Pablo
Picasso e ter o visto negado para entrar nos Estados Unidos, ela
pode figurar no Guiness Book como a violinista mais velha em atividade
no mundo
Luís
Edmundo Araújo
Kiko
Cabral
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Mariuccia
Iacovino ainda dá concertos.
O
último aconteceu em 21 de junho, quando executou obras de
Haendel, Brahms e Purcell. Longe das apresentações, ela
toca Cai, Cai, Balão para os dois bisnetos.
“Eles adoram e eu também”, diz
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Não
gosto muito de falar, meu negócio é tocar, avisa
a violinista carioca Mariuccia Iacovino, em tom de brincadeira.
Aos 87 anos, ela conviveu com os principais compositores brasileiros
de todos os tempos. Teve o privilégio de ser a responsável
pelas primeiras audições das obras de Heitor Villa-Lobos
para violino. Ainda é pouco para a senhora que continua se
apresentando até hoje. O último concerto aconteceu
no Teatro Municipal de Niterói, na quarta-feira 21 de junho,
quando tocou sonatas de Haendel, Brahms e Purcell. Tanta atividade
pode lhe valer o passaporte para o Guiness Book, como a violinista
mais velha do mundo em atividade.
Sua
carreira teve início em 1918, quando a menina de 6 anos surpreendeu
a família ao ser aprovada no exame do antigo Instituto Nacional
de Música, onde funciona atualmente a escola de música
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ficava embaixo
da mesa escutando as aulas de teoria musical da minha irmã
mais velha, recorda-se. Passei no exame e minha irmã,
não. Aos 13 anos, Mariuccia embarcou para Madri, com
o professor Mario Matteo. A viagem de navio patrocinada pelos pais
durou 15 dias. Viajou pela Espanha aprendendo os segredos dos acordes
clássicos.
O retorno
aconteceu um ano depois. Tão logo colocou os pés no
Rio de Janeiro, voltou às aulas com sua única professora
Paulina DAmbrósio, considerada até hoje a maior
intérprete das obras de Villa-Lobos. Ele chamava a
Paulina de generala do exército dele, conta. Não
demorou para que a aluna seguisse os passos da mestra. Aos 16 anos,
a violinista conquistou a medalha de ouro do Instituto Nacional
de Música. Como prêmio, ganhou uma viagem para a Europa.
O atraso no pagamento, porém, adiou a volta ao Velho Continente.
Quando recebeu o dinheiro do prêmio, Mariuccia o entregou
para a mãe. De presente, ganhou do pai meias compridas e
sapatos de salto. Há 70 anos, a menina era menina mesmo.
Não é como agora, que já se nasce grande.
As
aulas com Paulina a aproximaram de Villa-Lobos. Começamos
a estudar os quartetos dele, com ele, afirma. A amizade com
o maestro se acentuou depois do casamento com o pianista Arnaldo
Estrela, que trabalhava com o autor de Trenzinho Caipira.
Convidado pelo governo francês, Arnaldo Estrela, falecido
em 1980, mudou-se com a família para Paris, em 1945, ao final
da Segunda Guerra. Novamente de navio, a viagem durou 21 dias, uma
semana a mais que a previsão inicial.
Não
sei o motivo do atraso, mas quase faltou comida no final.
A bordo da embarcação, tocou uma peça do compositor
brasileiro Cláudio Santoro. Em Paris, o casal se encontrava
periodicamente com os escritores Jorge Amado e Zélia Gattai,
expulsos do Brasil pelo então presidente Getúlio Vargas.
Mariuccia é madrinha de Paloma, filha de Jorge e Zélia.
Em
1949, Mariuccia atuou como solista da orquestra Cologne, em Paris,
na primeira audição mundial da Fantasia de Movimentos
Místicos, considerada a obra de Villa-Lobos mais difícil
para violinos. Naquela ocasião, o próprio autor regeu
a orquestra. Três anos depois, a violinista e o marido se
juntaram
a Jorge Amado, Cândido Portinari e Pablo Picasso no Congresso
de Varsóvia, na Polônia, organizado pelo poeta chileno
Pablo Neruda em prol da paz.
O movimento,
que na época pedia o fim da Guerra da Coréia, acabou
trazendo problemas para Mariuccia anos depois, durante o auge do
macarthismo nos Estados Unidos (a caça aos supostos comunistas
promovida pelo senador americano Mc Carthy). Convidada por Villa-Lobos
para tocar em solo americano, a violinista teve o visto negado.
Não me deram porque tinha assinado o Apelo da Paz,
na Polônia, afirma. Acharam que eu era comunista.
De
volta ao Brasil, Mariuccia e Arnaldo Estrela formaram o Quarteto
da Guanabara, junto com
o iraniano Frederick Stephany, na viola, e
Iberê Gomes Grosso, no violoncelo. Em 1964, o grupo arrebatou
o prêmio internacional de quartetos Villa-Lobos e viajou por
toda a Europa, onde
se apresentou em 52 concertos. Durante dez anos, de 1969 a 1979,
o quarteto tocou no foyer do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Em plena ditadura militar, estudantes lotavam as escadarias do teatro
para ouvir música de câmara. O avanço tecnológico,
porém, tirou um pouco do prazer
de gravar da violinista, que tem seis discos na carreira. Agora
se corta a nota que não saiu e bota outra, até que
saia perfeito, reclama. Não há espontaneidade.
Quando
não está se apresentando, a mãe de duas filhas
e avó de cinco netos aproveita os dois bisnetos para dar
continuidade a uma tradição familiar. Em vez das obras
dos grandes compositores, Mariuccia
usa o violino para tocar Cai, Cai, Balão e outras
canções de ninar. Eles adoram, e eu também.
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