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Dona
Canô, 92 anos
A saga da mãe do tropicalismo
Ela andou de bonde e vapor, mudou de cidade por causa
dos filhos, entre eles Caetano e Bethânia, e hoje seu
maior compromisso é ir à missa
Gerson
de Faria
Santo Amaro da Purificação (BA)
Valter
Pontes
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“Eu
não pensava ter muitos filhos, mas não tinha como
se evitar naquele tempo”, diz Dona Canô, que criou
oito crianças, duas delas adotadas
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O número 179 da avenida Ferreira Bandeira, na pequena
Santo Amaro da Purificação, Recôncavo Baiano, é um endereço
tão familiar para os seus 50 mil habitantes quanto a
prefeitura e a igreja matriz. Por ali passam políticos
em visita à cidade. É marco inicial de festas populares.
E parada quase obrigatória de anônimos visitantes. Muitos
batem à porta solicitando uma fotografia junto à sua
proprietária. Ali reside Claudionor Viana Teles Veloso,
a dona Canô. O apelido vem de muito tempo, tomado de
um garoto que não conseguia pronunciar seu nome. E hoje
está inscrito na história santamarense, assim como os
de seus dois filhos ilustres, o compositor e cantor
Caetano Veloso e a intérprete Maria Bethânia, cuja fama
e prestígio acabaram por conferir-lhe notoriedade.
Dona
Canô nasceu em 16 de setembro de 1907. As imagens que
guarda da Santo Amaro do início do século são de famílias
sentadas à porta de casa e da edificação da primeira
praça, resultado da intervenção paisagística do intendente,
o prefeito da época, e que hoje dá nome à rua onde ela
mora. “Antes não havia nada. Bandeirão podou as árvores
e colocou bancos para as pessoas sentarem”, conta. Da
luz elétrica, lembra que surgiu, em 1918, a partir de
um conflito entre dois grupos políticos adversários.
“A briga foi feia, quebraram os lampiões de gás da cidade.”
BONDE
COM BURRO
Havia também os bondes puxados por burros. Com eles
alcançava-se o porto do Conde, de onde zarpava o vapor
para Salvador. A hora do embarque era definida pela
maré cheia. E a travessia durava quatro horas. Por trem
ia-se na metade do tempo, mas sempre com o risco de
quebra da locomotiva, alimentada a lenha. “Mesmo assim
eu preferia ir de trem”, conta dona Canô.
A
matriarca dos Veloso teve uma boa formação. Apesar da
origem humilde, freqüentou o Colégio das Sacramentinas,
escola paga e destinada exclusivamente a moças. Aprendeu
o idioma francês e teve aulas de piano. “Naquele tempo
não havia ginásio nem nada disso. Mas o ensino era muito
superior ao de hoje”, ela diz.
O
casamento de dona Canô, em 7 de janeiro de 1931, coincidiu
com a decadência dos engenhos de açúcar do Recôncavo.
Ela foi morar com o marido, José Telles Velloso, um
telegrafista da Companhia de Correios e Telégrafos,
na casa da sogra, na rua Direita, formando uma família
de 28 pessoas. Na época já tinha a responsabilidade
de criar uma filha: Nicinha, uma menina de três anos,
que elegeu os Veloso a sua segunda família.
A
primeira filha biológica do casal, Clara Maria, nasceu
um ano depois. Em seguida, vieram Maria Isabel, Rodrigo,
Roberto, Caetano e Maria Bethânia. Irene, a caçula,
tema de uma música de Caetano, só seria adotada por
Canô anos depois. Oito filhos ao todo. “Eu não pensava
ter muitos filhos, mas não tinha como se evitar naquele
tempo”, diz.
Os
anos trinta marcaram a chegada dos primeiros automóveis.
Foi quando surgiu a marinete, o primeiro ônibus da cidade,
levado pelas mãos de um certo João. João da Marinete
modernizou o transporte local e anos mais tarde, durante
os freqüentes cortes de energia no tempo da guerra,
garantiu a transmissão radiofônica da novela O Direito
de Nascer. Com o auxílio do gerador de seu coletivo
fazia chegar à platéia, reunida na praça, o drama de
Mamãe Dolores e Albertinho Limonta.
Quando
a Segunda Grande Guerra chegou ao fim, em 1945, os Veloso
começaram a detectar os sinais das inclinações artísticas
dos filhos. Aos quatro anos, Caetano grafitava as paredes
da casa com o carvão tirado do fogão a lenha, até descobrir
tintas, paletas e pincéis, com os quais chegou a produzir
alguns quadros na adolescência. Com dez, gravou seu
primeiro disco. “Caetano ficou na sala com o microfone
enquanto Nicinha tocava o piano”, lembra Dona Canô.
Foram duas faixas: “Mãezinha Querida” e “Feitiço da
Vila”, de Noel Rosa. “Esse disco está com meu filho
Rodrigo até hoje. Durante muitos anos a gravadora correu
atrás de Caetano feito doida.” Mabel, que mais tarde
viria a se tornar uma poetiza, tornou-se a guardiã dos
primeiros escritos de Caetano. Maria Bethânia, embora
gostasse de cantar, era barrada no coral do colégio
pelo grave timbre que sua voz já revelava. “Mas ela
não se importava. Dizia que ia ser artista”, conta a
mãe.
EXÍLIO
DO FILHO
No início na década de 60 o casal se transferiu para
Salvador, acompanhando os filhos que procuravam trabalho.
Veio o show no Teatro Opinião e a partida dos caçulas
para o Rio de Janeiro. Bethânia tinha dezessete anos.
“Zeca não queria que ela fosse, mas Caetano disse: ela
vai comigo”. Em seguida, vieram os festivais de música
da antiga TV Record e Santo Amaro saltou do mapa aos
olhos do País.
Os
anos de chumbo projetaram os Veloso em profunda angústia
e sofrimento. Caetano partiu, em 1969, para o exílio
em Londres junto com o parceiro Gilberto Gil, depois
de ficarem presos alguns meses no Rio. “Foi uma coisa
bárbara. Queriam incriminá-lo com acusações falsas”,
lembra a mãe. Foram dois anos e meio de ausência, quebrada
apenas durante alguns dias por ocasião dos 40 anos de
casamento de Zeca e Canô. Isso por determinação de Maria
Bethânia, que foi ao presidente Garrastazu Médici pedir
a concessão de uma visita.
Em
1984, o casal voltou ao antigo casarão de Santo Amaro
da Purificação, de acordo com o desejo do marido. Doente,
Zeca queria morrer em sua terra, o que aconteceu apenas
seis dias depois da mudança. Desde então, dona Canô
só deixou a cidade em visitas aos filhos ou para acompanhá-los
em viagens. Conheceu Paris, Nova York, Madri, Barcelona,
mas é de Roma que ela guarda a melhor lembrança: a platéia
toda de um concerto de Caetano com isqueiros acesos
na mão, aclamando o cantor. “Ver o teatro todo iluminado
foi uma coisa linda”, diz. Hoje, aos 92 anos, oito filhos
e nove netos, dona Canô procura restringir seus compromissos
sociais. Mantém agendadas só as primeiras terças e sextas-feiras
de cada mês, além dos domingos, quando vai religiosamente
às missas na Igreja da Nossa Senhora da Purificação.
Mesmo aos shows dos filhos, prefere ir apenas em ocasiões
excepcionais, como no recente concerto do tenor Luciano
Pavarotti ao lado de Gal Costa e Maria Bethânia, em
Salvador. “Aqui é o meu canto”, diz.
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