webcardscontos e pesadelosmagiascrânios e colunastestesfilmes de terrorreceitashistória da datacapa



Lobisomem
Por Gian Danton

"Não perseguir outro homem – essa é a lei. Não somos homens?"
H. G. Wells – A Ilha do Doutor Moreau

Houve certa noite, quando eu criança, que desapareci de minha casa. Dei grandes atribulações a todos de minha família, que gastaram a noite inteira me procurando. Morávamos então perto da floresta e minha mãe temia que eu tivesse ido para ali. E, de fato, fui encontrado ao nascer do dia entre as árvores. Estava cansado, tinha os olhos avermelhados e trazia terras em minhas mãos. As roupas estavam esfarrapadas. Ignoro completamente o que possa ter acontecido naquela noite. O fato é que o acidente foi, por muito tempo, assunto em minha família. Nas noites escuras, os garotos contavam aos menores histórias extraordinárias sobre monstros que eu teria encontrado naquela noite. Os pequenos tremiam de medo. Eu, no entanto, tinha total indiferença pelo assunto.

Assim, cresci como qualquer criança. Freqüentei a escola e me formei. De diferente dos outros tinha pouca coisa. De flagrante, apenas o meu isolamento. Conversava pouco e me mantia, sempre que possível, afastado dos outros. De resto, havia alguns detalhes. Coisas pequenas, que poucos percebiam. Entre elas minha docilidade e calma extremas. Era incapaz de reagir a qualquer agressão. Minto. Reagir para mim não constituía problema, exceto pela certeza de que a reação seria extremada. Às vezes sonhava que esmigalhava crânios e me servia dos miolos. Em certas ocasiões, raiva tremenda se apossava de mim. Tinha medo de suas conseqüências e, assim, abaixava a cabeça e aceitava qualquer tipo de agressão.

Muitos, muitos anos depois daquela primeira noite, houve uma outra.Na época eu era estudante universitário e, à medida que chegava a noite, comecei a sentir-me estranho. Fui dominado por uma terrível vontade de correr descontroladamente, afastando-me das pessoas. E foi o que fiz, embora não tivesse propriamente corrido. Fui me aproximando da floresta, enquanto estranhos tiques dominavam meu corpo e especialmente o rosto. A pele acima dos lábios se contraía, mostrando a todo instante os meus dentes. Tinha ímpetos de me abaixar e correr como um cachorro... ou um lobo.Entrei na floresta e o que se seguiu foi uma série de lembranças caóticas: o ranger de dentes, a lua acima da folhagem das árvores, barulho secos, latidos, olhos brilhantes, gritos esganiçados, água sob meus pés, imagens deformadas com a velocidade da corrida, e sangue: o gosto de sangue em minha boca.

Acordei com o líquido coagulado empapando meus lábios e minha língua. Estava em minha cama, seminu, os cabelos em alvoroço, as unhas repletas de terra. Naquele mesmo dia foi encontrado o corpo de uma mulher boiando no rio próximo à universidade. Devido à situação do cadáver, houve quem levantasse a hipótese de que ela teria sido atacada por um animal selvagem, embora a maior parte dos especialistas discordasse. A presença de um animal selvagem em plena Belém era, no mínimo, surrealista. Permaneceu o mistério. Passei dias e dias atormentado pela consciência. Lembrava do sangue em meus lábios e sentia ânsia de vômito. Vi a fotografia da garota nos jornais. Era bonita. Chorei por ela.

Há algum tempo aconteceu de novo. Senti os mesmos tiques e a mesma vontade de caminhar como lobos. Tinha o desejo de sangue em minha boca. Quando dei por mim, estava na floresta, seguindo meus instintos primários. Mas havia uma diferença: agora eu tinha plena consciência dos acontecimentos. Corri como um louco. Era novamente um caçador. Através do faro, percebi a presença de um animal pequeno, talvez uma cotia. Assustado, o bicho se escondia em todos os cantos e desaparecia entre as folhagens. Meu olfato, no entanto, estava aguçadíssimo. Não precisava vê-lo para saber onde estava. Durante toda a caçada, senti um prazer do qual jamais havia tomado consciência. Todos os meus sentidos estavam aguçados. Era como uma criança divertindo-se com seu brinquedo predileto. Havia encurralado o animal quando senti um novo cheiro. Um aroma diferente, que me arrebatou com a força de um soco. Abandonei minha presa e percorri, desconfiado, a mata, na direção que o olfato me indicava. O que vi está além de qualquer narrativa. Havia um homem lá. Os pêlos de seu corpo pareciam ter crescido consideravelmente. A cabeleira desgrenhada, aliada à expressão grotesca e ao sangue grudado nas presas davam-lhe um ar de fera. No chão, coberto de sangue, jazia um garoto, o coração pulsando sobre o peito aberto. Nós nos olhamos. Fitamos um ao outro, arreganhando os dentes e grunhindo. Talvez esse olhar tenha durado horas. Já não éramos homens. Éramos feras, prontas a lutar por um pouco de sangue. Súbito dei-me conta disso. Lembrei-me de quem era, de como vivia, dos amores que tivera. Lembrei-me disso e senti vergonha. Em que eu havia me transformado? Onde estava o ser humano em mim? Arrasado pela revelação, abaixei os olhos e fugi, deixando que meu adversário devorasse sozinho sua presa. No caminho vislumbrei olhos me acompanhando pela mata. Havia outros. Corri desesperado, crente de que me matariam se tivessem chance.

Desde então tenho permanecido em casa, trancado, com medo da fera que persegue minha alma. Talvez, sob a máscara de civilidade, escondam-se feras que remontam aos primórdios da espécie humana. Talvez os primeiros homens tenham sido animais tão agressivos que devoravam até mesmo os membros de sua própria espécie. Às vezes penso em outra hipótese, igualmente bizarra – embora minha situação demonstre o quão pequeno é o limite entre o real e o extraordinário.

Talvez, quando nossos ancestrais caminhavam pelas florestas antigas, as mulheres tenham sido encontradas e mesmo capturadas por caçadores vorazes, feras assassinas, que as engravidaram. Talvez as pessoas que encontrei sejam fruto dessa união... Ou talvez sejamos todos simplesmente feras, esperando a ocasião para liberar nossa violência.

* * * * * * * * * * * * *

O doutor retirou os óculos e colocou as folhas de papel sobre a mesa.
- O que acha?
- Em que circunstâncias ele foi encontrado?
O diretor do hospital retirou algumas fotos da gaveta e as espalhou sobre a mesa.
- Ele estava trancado em casa, inconsciente, a roupa completamente rasgada. Acreditamos que tenha sido autoflagelação. Talvez estivesse trancado em casa há pelo menos um mês. Os vizinhos estranharam e chamaram a polícia. Os manuscritos foram encontrados no chão. Os policiais o trouxeram para cá, mas temo que não dispomos de profissionais qualificados para cuidar do caso. Pensamos, inicialmente, em diagnosticar esquizofrenia...
- Não é esquizofrenia. – cortou o doutor. A doença do rapaz tem suas próprias características. Casos de homens que se transformam em lobos são encontrados em todas as culturas, desde a Roma antiga. Os brasileiros costumam chamar essas pobres pessoas de lobisomens. Alguém que tenha conhecimentos mais apurados de zoologia sabe o quanto é falha a analogia. Lobos são animais sociais. Vivem e caçam em bandos. Por outro lado, os chamados lobisomens são dominados por um instinto selvagem e individualista. Tanto que muitas vezes se alimentam de outros seres humanos.
- Fico feliz em perceber que o senhor domina o assunto. Acha que pode cuidar desse caso?
- Certamente.
O doutor recostou-se na cadeira e analisou cuidadosamente os manuscritos. Havia terra sob suas unhas.

volta


Copyright© 1996 - 2000 Terra Networks. Todos os direitos reservados. All rights reserved.