Passara o dia inteiro pensando no que tinha sonhado na noite anterior. Idéias sombrias e assustadoras faziam com que ele temesse a própria imaginação. Nunca havia sonhado com algo tão assustador como aquela seqüência de fatos que fugiam tanto da realidade que ele aprendera a transformar em rotina. Tinha medo de voltar a dormir , de voltar a habitar aquele mundo de pesadelos. Àquela casa, àquela pequena saleta escura e de cheiro forte, com suas estranhas janelas e paredes que pareciam pulsar conforme o batimento de seu coração. O triste choro de crianças que provinha das rachaduras no chão, som que era estranhamente familiar. A alta temperatura do lugar e as sombras que dançavam em sua frente, convidando-o a participar desta agregação de eventos surreais.
Não queria falar com ninguém sobre sua inquietação para não passar por louco, mas não sabia se aguentaria guardar todo esse mar de mistérios em sua alma.
Ao sair de seu trabalho, algo fez com que Lúcio pegasse um caminho alternativo para voltar á sua casa. Alguns minutos depois, ele se deparou com uma rua de nome desconhecido,chamada Rua Horácio Mesquita. Ao entrar na rua, seu carro imediatamente parou de funcionar. – Diabos ! – exclamou Lúcio. Olhou para a frente de seu carro procurando algum sinal de fumaça e notou que uma densa neblina cobria a rua , sendo impossível enxergar mais de dois metros adiante. Olhou pelo retrovisor de seu carro e verificou que a neblina estava apenas a sua frente, a partir do primeiro casarão da rua . Saiu do carro e olhou para trás, confirmando a impressão que tivera dentro do carro. Notou também que a temperatura estava muito alta, principalmente para um fim de tarde de inverno. O silêncio era tão intenso que dava impressão de ser algo palpável. Queria voltar para pedir ajuda em algum posto, mas algo mais forte do que ele parecia lhe induzir a seguir na rua. Mas que diabos está acontecendo ?! – pensou ele. Alguns minutos depois decidiu andar pela misteriosa rua em busca de ajuda. Já havia passado por três casarões antigos, muito bem conservados por sinal, fato incomum nos dias de hoje. Suas janelas não mostravam sinal algum de habitação, estavam simplesmente guardando o vazio. Não havia carros na rua, tampouco pessoas. Nenhuma vida parecia encontrar-se presente ali, tudo parecia um sonho, um pesadelo que só acabaria com o terror final. O calor parecia se intensificar a medida que ele adentrava na rua. Depois de passar por um restaurante antigo, aparentemente vazio também, alguma coisa chamou a atenção de Lucio no meio da névoa. Não sabia o que era, mas com certeza algo tinha se mexido por trás daquela cortina branca. O medo começava a invadir impetuosamente a sua mente, seu coração acelerava de forma alucinada e o terror do ambiente entrava em sua alma. Andou mais alguns metros e novamente percebeu algo, algo passou correndo a sua direita e parou bem em sua frente, cantado alguma coisa. Desta vez ele pode destinguir perfeitamente o que era, mas mesmo assim ele não podia acreditar. Uma criança, de cabelos negros e de não mais de oito anos, vestindo uma blusa verde claro e calças azuis, o que lembrava um uniforme de escola ou algo do gênero. – O que você está fazendo aqui ?- perguntou Lúcio. Nenhuma resposta foi obtida. A criança não parecia estar assustada com aquele cenário fantasmagórico, parecia até estar bem a vontade. – Onde você mora ?- insistiu Lucio. Mais uma vez a resposta da criança era o silêncio absoluto. O silêncio então foi quebrado por uma risada, infantil e ao mesmo tempo sádica, que vinha de algo às suas costas. Virou-se rapidamente e viu uma outra criança, trajando as mesmas roupas que a outra, parada olhando fixamente para ele. Em questão de segundos, mais quatro crianças apareceram subitamente ao seu redor. Elas formavam agora uma roda humana a sua volta. Mas que crianças eram estas !? Aonde que ele havia se metido ?! Nada parecia responder estas perguntas. Todas elas vestiam a mesma roupa, as mesmas blusas verdes e calças azuis. Meninos e meninas quase não se diferenciavam entre si. Sinistramente elas começaram a girar em sua volta, cantarolando algum tipo de cantiga infantil, que fez Lúcio lembrar de sua infância. Ele não sabia o que fazer. Não queria utilizar a força para se ver livre daquela ciranda doentia, afinal, eles eram todas crianças. – Me deixem passar, por favor ! – pediu ele. As crianças pareciam nem tê-lo escutado e começavam a cantar cada vez mais alto, e a girar cada vez mais rápido. Giravam tão rápido que seus rostos se misturavam, faces do desconhecido formando um borrão só, vozes que invadiam o silêncio e se impregnavam no ambiente. Lúcio não conseguiu aguentar e acabou caindo de joelhos perante ao terror, seus olhos pediam as lágrimas, mas elas pareciam estar presas as profundezas de seu interior com medo de aparecer. Fechou os olhos. As vozes e tudo o mais pareceu se tornar cada vez mais distante, cada vez menos intenso, até que ele desmaiou por completo.
Um tempo depois, Lúcio voltava a si, ainda meio tonto e com uma horrível dor de cabeça. O ambiente em que ele estava se encontrava em breu total, demorando um pouco até que sua visão acostumasse com a escuridão. Mas não era preciso enxergar para ele saber aonde estava. Um forte e inigualável odor chegou a suas narinas, odor que ele nunca mais iria esquecer. Ele estava na mesma saleta de seu sonho! Atordoado e com sua visão quase reduzida a zero, começou a apalpar as paredes para ver se encontrava a maçaneta da porta que o levaria para longe daquele pesadelo. Notou que tudo na sala estava muito quente. Finalmente encontrou-a e em instantes ele se encontrava fora da sala. Correu para a porta da frente como nunca tinha corrido para nada antes. Ao abri-la, era como se estivesse realmente em um sonho, um pesadelo recorrente . Ele tinha voltado para a mesma sala! Desesperado, se jogou no canto da sala e começou a chorar como uma criança assustada. O que estava acontecendo com ele não podia ser real. Após alguns minutos seus olhos já haviam se acostumado com a escuridão e entre lágrimas ele avistou um ser pequenino no centro da sala. Olhou mais atentamente e conseguiu distinguir os traços daquele ser . Era uma criança idêntica as que ele tinha visto na rua. – Por favor, me deixem em paz ! Eu não fiz nada para vocês ! – gritava Lúcio. A criança parecia desta vez prestar atenção no que ele dizia e assombrosamente flutuou até em frente as janelas do cômodo. Uma luz branca e intensa surgiu em volta da criança. Uma espécie de portal se abria á suas costas. A luz era de tamanha intensidade que Lúcio pensou por alguns instantes ter ficado cego.- Venha comigo – disse a criança, com a voz mais doce que Lúcio já havia escutado. Para onde? - retrucou Lúcio, sentindo uma calma inexplicável tomar conta de seu espírito. - Para casa .– finalizou a menina, pegando delicadamente em uma de suas mão e o levando até o portal de luz. Caminhando calmamente, os dois pararam em frente ao portal. Lúcio hesitou antes de atravessá-lo, mas foi persuadido pelo doce sorriso que a menina soltara sobre ele. Em segundos eles desapareceram dentro da luz. Logo em seguida a luz também desapareceu.
O desaparecimento de Lúcio nunca foi explicado pelas autoridades. Acredita-se que ele simplesmente se encheu de sua rotina e resolveu largar tudo para trás, indo morar em algum lugar distante dali. A única falha desta teoria é que o carro de Lúcio foi encontrado estacionado em um terreno baldio. O que o carro estava fazendo ali permaneceu como mais um mistério neste caso, já que ali não existia nada desde que um incêndio, em abril de 1972, iniciado na creche São Leopoldo, destruíra quase toda a rua Horácio Mesquita. Mais um fato escabroso apareceu com a investigação para alimentar o desconhecido. Lúcio Menezes da Silva, fora, ainda bebê, o único sobrevivente daquele terrível incêndio.
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