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Dia das Bruxas: o Sacrifício
Por André Scarabotto

Ainda chovia na ampla esplanada entre os monolitos. A manifestação da altíssima permanecia ali com seus olhos apagados e um ar vazio. Tudo isso acontecia ali, próximo a queda da consolação e no terceiro quarto do Paraíso.

Os quatro monolitos eram uma mescla de vidro, concreto e metal, porém seus avatares não se encontravam ali. Não no momento. Eram compostos de duas torres gêmeas na forma, o terceiro era uma parede abjeta e o quarto sempre estava vazio. Entre eles havia uma esplanada e nessa uma fonte com águas coloridas e oscilantes, o que dava ao primeiro monolito toda sua magnitude, este era a manifestação da altíssima neste mundo. O tempo não conseguia alcançar esse local, e as águas da fonte de todas as cores esmorecia devagar com a garoa.

Encontrava-me parado, a luta havia acabado. Minha oponente estava derrotada e transpassada por minha lâmina, seu sangue fluía quente e caldoso para o chão, misturando-se a água da chuva. Seus olhos estavam imensos, tentando a todo custo mostrar sua visão corrupta e decrépita. Então vi que a rameira mãe de todos demônios, a nephilim falida, havia vencido.

Outrora você foi quem eu amei, um sonho puro e cálido, antes dela chegar. Seu rosto dormia próximo ao meu coração e suas coxas enrolavam-se as minhas quando dormíamos abraçados. Em alguns momentos éramos um único ser. Seus seios e meus sonhos... (suspiro) Ah, pobre Vênus! Foste enviada ao mundo, e aos meus braços só para me lembrar da fugacidade do mundo. Tal qual um ato de vilania aproximou-se sutilmente como uma cura. Porém era um veneno para me embriagar e me intoxicar. Traíste quem era e o que simbolizava, vendeu tua alma e vontade a grande rameira. E ao lado dessa se revelou, e eu angustiosamente descobri sua verdadeira face. Uma face fétida e pustulenta. Um ser abissal e voraz, que a tudo consome. Porém, era seu destino faze-lo, eu lutei na vã tentativa de salvá-la. Falhei, em mostrar a ti que há um sentido na existência. Fui um tolo, por acreditar nisso.

O primeiro ataque foi seu, fulminante e vitorioso. Não estava sozinha era aliada a rameira, nephilin mãe de todos os demônios. Sem falsas cortesias rasgou meu tórax da cintura ao pescoço, assustado eu fugi. Enquanto corria, a rameira intensificava seus ataques a minha volta. Fugi e me distanciei daqueles que mais se importavam comigo, estava ferido e com medo. Não queria que me vissem daquele jeito, assim encontrei meu refúgio a sombra da altíssima, na esplanada onde o tempo não alcança. Ali recuperei minha essência, aquela que havia abandonado para viver ao seu lado. Gritei na chuva que não a perderia jamais. Não obtive um perdão interior, e ainda assim maldizia o fato de estar vivo após tais eventos. Apesar de sentir minha força retornando, ainda precisaria do tempo (conceito inexistente naquela esplanada) para me curar. Por que não deixei que me retalhassem, quebrassem meus ossos e me destruísse por completo?

Aos poucos passei a caminhar uma vez mais, mesmo que fosse só para caminhar. Porém quando não me achava na esplanada, seu pensamento me localizava como os abutres rodeando a carniça. Quando me atacou de novo fugi, você e a rameira me caçaram nas vielas do Paraíso, ardiloso escapei. Pouco tempo depois enfrentei você, a grande custo, ao afastá-la como afastamos os cães sarnentos, quase perdi a vida. Meu coração se desregulou, junto com o meu pulmão e a bela dama quase me levou. Voltei uma vez mais a vida no colo de uma grande amiga. Em outro encontro você tentou enviar um réles valete para me enfrentar, pobrezinho, desistiu rapidamente quando viu que não sobreviveria. E então aconteceu esse momento final.

Agora seu sangue já se esvai fino em minha lâmina fria, teu peito continua trespassado. Seu corpo convulsiona, seus olhos ainda mostram a expressão de descrença de que está morrendo. Ah, pobre e insignificante discípula da rameira. Tal qual um cigarro consumido, geme e agoniza. Tua "fiel" aliada a abandonou, retornando para sua terra distante (de onde nunca deveria ter saído). Seus gemidos recordam-me nosso sexo. Lembro-me de seu corpo retesando-se em minha cama quando a invadia. Lembro-me de como implorava por minha selvageria e desejava-me cada vez mais fundo em ti. Bebia de meus fluidos com prazer, podia viver assim para sempre. Fui o primeiro a rasgar teu sexo e sua vida, e o último a tocá-la.

Agora se desfalece e morre, seu corpo atinge o chão. Sem muito peso, e com a expressão de incredulidade, você morre. Os trovões ecoam na madrugada chuvosa fora da esplanada. Sinto a presença da Altíssima observar-me de entre as nuvens. Um estranho sacrifício a seus olhos...

Não haverão magias nem ladainhas para me proteger depois desse ato. Fecho meus olhos e ainda te desejava em meu leito, não o que havia se tornado no final; e sim o que era antes da rameira ter retornado. Você a odiava e ainda assim convidava-a para habitar sua alcova. Não a culpo, você não sabia o quanto ela te usou. A maior frustração dela, foi não ter sido possuída por mim quando se insinuou em uma noite qualquer. Para vingar-se ela corrompeu você e o pior de tudo você permitiu que isso acontecesse.

Chuto seu cadáver na barriga, quebro teu maxilar com o salto de minha bota,chuto sua cabeça e vejo um dos globos oculares saltarem para a sarjeta. Invisto novamente com minha lâmina sobre sua carne. Retalhando-a, abrindo-te inteira para tentar encontrar algum pedaço seu não corrompido. Infelizmente, não encontro nada. Escarro sobre os restos com minha revolta. Revolta por você ter se corrompido depois de tudo que vivemos e aprendemos juntos. Saiba como é grande meu amor por ti, a ponto de não entregá-lo mais a você, pobre resto de uma alma.

Morra agora, em uma sarjeta rodeada de cães, imundos e afogados na própria urina. Morra e tente culpar seus progenitores, em vão, porquê eles vão dizer que a culpa é toda sua. Morra e pare de converter os outros em suas insanidades. (Como fazia, carregando-nos com os seus problemas). Dê a rameira tua existência, ela a convenceu e a corrompeu com seu ego. Uma pena você não ter percebido isso antes. Que um banho no teu sangue, purifique minha alma, lavando a culpa do meu maior pecado: trair a minha essência, em nome de uma ilusão.(você)

Em um dos monolitos, os olhos da Altíssima ardiam na chuva fria. Em toda a sua magnitude ela informava que a longa noite em que vivi esses meses, havia acabado.

No coração do Limiar, encontrei a vida de novo.

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