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Tim Vickery: Fazer do mundo um aeroporto gigante dificilmente vai parar o extremista disposto a morrer

Para colunista da BBC Brasil, tecnologias como o controle de torcedores em estádios via biometria não são suficientes para garantir a segurança, além de serem uma arma em potencial na mão de governos autoritários.

22 set 2017 - 12h48
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Aperto o botão e avanço rápido 26 anos, e lá estava eu na bancada do Redação SporTV, com o programa debatendo uma medida tecnológica a ser aplicada no jogo do futebol entre Atlético Paranaense e Coritiba. Pela primeira vez no Brasil, para entrar em qualquer setor do estádio seria preciso passar por uma confirmação de identidade.

Como escreveu o site da ESPN Brasil, "no momento em que o espectador colocar sua digital no leitor biométrico, um conjunto vai informar se a pessoa é a titular do cartão ou ingresso e também se há contra ela mandado de prisão em aberto ou restrição para entrada no estádio, devido a alguma pena".

Os meus colegas na bancada achavam isso uma maravilha, um avanço tecnológico capaz de diminuir a violência e ajudar em várias investigações. Não discordo. Mas fui o único lá a mostrar alguma preocupação com as implicações dessa tecnologia.

Temo que o mundo possa ser transformado num aeroporto gigante, e, já que é muito difícil parar o extremista disposto a morrer, vamos ter mais perdas do que ganhos no processo.

Vivemos num mundo caracterizado pela desigualdade - o que acontece no Brasil é uma versão extrema de uma tendência mundial. E o modelo atual, com a dominância do capital financeiro, tende a reproduzir mais ainda tal desigualdade.

Uma consequência óbvia disso é a corrida para soluções autoritárias. De condomínios fechados até governos raivosos. Isso é cada dia mais claro no Brasil, onde um general até fala em intervenção militar para colocar ordem na casa, e tem quem ache isso uma ideia razoável. E não há dúvida de que esse tipo de tecnologia biométrica favorece um governo autoritário, de qualquer lado ideológico, buscando impor controle total.

Mulher usa identificação biométrica para acessar espaço
Mulher usa identificação biométrica para acessar espaço
Foto: BBC News Brasil

Entre os meus pesadelos pessoais é o sumiço do dinheiro físico. O fim de cédulas e moedas seria triste. Com o dinheiro totalmente digitalizado, o acesso a ele pode ser cortado por uma autoridade central.

A desculpa inevitável seria que o elemento tem ligações com o extremismo, então qualquer medida contra ele é válida. Mas, na medida em que o poder corrompe, não é fácil confiar que um Estado autoritário vai saber diferenciar um extremista de uma voz contestadora - uma coisa que é saudável em qualquer sociedade, mas que sempre incomoda os manda-chuvas.

A grande verdade é que a liberdade sempre tem um preço. Nunca vem de graça - tem que ser conquistada. Tem um preço para ganhá-la, que pode ser pago em anos de luta e com o sangue de mártires. E tem um preço para mantê-la, que pode ser pago na vigilância do poder e a briga para não cair em armadilhas autoritárias.

Muito tempo atrás, no que parece agora uma outra vida, eu era gerente de um teatro no centro de Londres. Na época, o início dos anos 90, houve uma série de atentados na cidade organizados pela IRA, o grupo irlandês que lutava por independência.

Um dia, junto a outras pessoas de cinemas, museus e teatros na área, assisti a uma palestra da polícia sobre como lidar com esse tipo de incidente. Aprendi que uma bomba com grande poder destrutivo cabia dentro da caixa de um Big Mac. Cheguei a uma conclusão - é muito difícil parar o extremista disposto a morrer.

*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.

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