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LANCE!

Ciclismo brasileiro tem 33 suspensos e tenta se livrar da praga do doping

Aumento no número de testes e décadas de desinformação ajudam a explicar cenário. País está na mira dos órgãos de controle por acúmulo de casos e precisa dar respostas efetivas

24 set 2019 - 07h05
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O Brasil está no centro de uma batalha mundial contra o doping no ciclismo. Enquanto o número de praticantes cresce, o terceiro país com maior quantidade de suspensões nos registros da União Ciclística Internacional (UCI, em inglês) sofre pressões para dar uma resposta eficaz sobre o combate ao uso de substâncias proibidas. O LANCE! inicia nesta terça-feira uma série de cinco reportagens sobre a "praga" do doping.

A nação sede dos últimos Jogos Olímpicos tem 33 ciclistas suspensos. Em testes da UCI, que monitora a elite mundial, 13 cumprem ganchos definitivos e dois aparecem em caráter provisório, à espera de julgamento. Já sob a gestão da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), entidade do governo federal responsável pelas coletas e resultados no país, 16 esportistas encontram-se suspensos em definitivo e dois estão provisoriamente.

O número ainda aumentará, já que Kacio Freitas foi flagrado durante os Jogos Pan-Americanos de Lima, em agosto, e ainda não teve o nome comunicado pela PanAm Sports, a responsável pelos exames durante o evento. Na ocasião, ele levou o bronze na prova de velocidade por equipes de pista. Nenhum outro esporte acumula tantos casos no Brasil quanto o ciclismo.

Se considerados somente os dados da UCI, os líderes no quesito suspensões por doping são Costa Rica, com 20 (19 definitivas e uma provisória), e Colômbia, também com 20 (16 definitivas e quatro provisórias). O Brasil vem na sequência, com seus 15. A Itália é o quarto, com 13 (11 definitivas e duas provisórias). A presença da bandeira verde e amarela nesta lista liga um alerta.

- Preocupa. Temos um número expressivo de casos e vale a pena ter atenção. É necessário, até para que o esporte se desenvolva, que haja um número crescente de amostras coletadas. Aqui, valorizamos pouco o ciclismo, no meu entendimento. Se considerarmos o quanto ele é importante na Europa e na Colômbia, vemos que há margem grande de crescimento no combate ao doping - avalia o professor Henrique Pereira, diretor do Laboratório Brasileiro de Controle de Dopagem (LBCD), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), único da América do Sul credenciado pela Agência Mundial Antidoping (Wada) para realizar testes.

Para especialistas, há três razões essenciais que ajudam a explicar os números: aumento na quantidade de testes realizados no Brasil, a evolução tecnológica, que permite detecção cada vez mais sensível e detalhada de agentes proibidos, e o histórico de desinformação no país a respeito do problema do doping.

- A UCI está testando muito em decorrência da pressão internacional. Historicamente, o doping no ciclismo é popular. Se você procura mais, vai pegar mais gente - explicou o advogado Bichara Neto, que atua em diversos casos de doping.

No Brasil, atletas evitam falar sobre o assunto. Em 2017, a Funvic/Team Soul Brasil Pro Cycling, primeira equipe do país a receber a licença Pro Continental da UCI, correspondente à segunda categoria mais importante do ciclismo de estrada mundial, foi suspensa por casos de doping. O aumento do controle no nível amador também contribuiu para o salto no número de casos.

- As pessoas se arriscam cada vez mais. Alguns estão aprendendo que, quanto mais burlar, mais será pego. No ciclismo, acontece muito mais no amador do que no profissional. O problema é que ainda temos milhares de provas não controladas, como corridas de ruas, com organizadores próprios, diferentemente do Campeonato Brasileiro. Mas é uma imbecilidade (o amador se dopar). O atleta que disputa um evento porque tem prazer, e não para ir à Seleção principal, está se enganando. É uma praga nos esportes de força - disse Edilson Tubiba, coordenador do Paraciclismo na Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC).

Substância 'vilã' ainda é preocupação

O uso das substâncias obedece, em sua maioria, a um padrão. Os casos positivos no ciclismo costumam acontecer por tipos de agentes que não são contaminantes. A mais famosa no meio é a EPO (eritropoietina), que levou o americano Lance Armstrong a ser banido pela UCI e perder todos os seus títulos, incluindo sete da Volta da França, em 2012.

Um artigo da revista "Drug Testing and Analysis" publicado em 2016, na França, mostrou que a quantidade de resultados analíticos adversos no ciclismo deve-se, em grande parte, à EPO ou moléculas que mimetizam a ação de substância. A pena para esse tipo de caso é de quatro anos.

Lance Armstrong foi banido pela UCI por uso de EPO. Hoje, é atração de um podcast sobre ciclismo e dá os seus pitacos (Foto: Divulgação)

Trata-se de um hormônio fabricado pelo rim e que melhora a performance de atletas, uma vez que vai para a medula óssea e faz o corpo aumentar a produção de glóbulos vermelhos. Com isso, a quantidade de oxigênio transportada pelo sangue aumenta.

O resultado é o mesmo gerado pelos Ativadores Contínuos do Receptor de Eritropoietina (CERA, em inglês), fármacos criados para tratar pessoas com doença renal.

- Isso não tem nada a ver com o doping acidental. É uso mesmo, com finalidade de aumentar a performance. Quando mede-se esses agentes, eles têm características de migração de forma diferente da EPO fabricada. Então, ou alguém injetou no atleta ou ele injetou nele mesmo - explica L.C. Cameron, professor titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Do ponto de vista da saúde humana, as consequências são perigosas.

- Isso faz com que o sangue tenha uma mudança de densidade e viscosidade. Com mais elementos figurados, o trabalho cardíaco aumenta. Por si só é um problema de médio a longo prazo, pois pode levar a consequências importantes do ponto de vista cardiovascular - diz Cameron.

CBC elabora programa educativo e não teme sanções

A Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC) admite que o problema precisa ser combatido e elaborou um Programa de Ética e Integridade, que tem a educação antidoping como foco. Uma cartilha tem sido distribuída desde o início do ano dentro da estrutura da entidade, entre atletas, técnicos e membros de comissões técnicas.

Outra medida foi a criação de um termo de convivência da CBC, para que os ciclistas comprometam-se a não ingerir substâncias e praticar atos abusivos, de cunho moral ou sexual. O objetivo é que, se alguma infração acontecer no futuro, ninguém possa alegar desconhecimento para a entidade.

- A CBC está adotando várias medidas para combater fraudes como o doping, com um programa amplo sobre integridade. É um trabalho árduo e expressivo. Temos uma organização antidoping dentro da CBC, encabeçada pelo Dr. Fernando Solera. Ele está à disposição de atletas e técnicos para evitar o doping involuntário, com a ingestão de medicamentos de forma inadvertida, que pode gerar doping - diz Paulo Schmitt, consultor jurídico da CBC e procurador do Tribunal de Justiça Antidopagem (TJD-AD), único órgão responsável pelo julgamentos de doping dentro do Brasil.

A UCI fiscaliza os principais países que somam casos de doping. A entidade está preocupada com o cenário na América do Sul. Seu presidente, o francês David Lappartient, não descartou possíveis sanções caso o quadro não evolua. A declaração foi dada em entrevista ao "Olhar Olímpico", do "Uol", durante o Pan.

A CBC diz manter contato diário com a UCI e não acredita que possa sofrer uma suspensão pelo acúmulo de casos, uma vez que tem tomado ações.

- Nós trabalhamos com a UCI, até por obrigação institucional, e temos contato direto sobre os casos. Na verdade, não há nenhum movimento que possa indicar uma penalização ao Brasil. Não recebemos nenhuma notificação ou qualquer manifestação nesse sentido. Mas, independentemente disso, trabalhamos ao lado deles para o que for necessário. É uma área bastante complexa - afirmou Schmitt.

Ciclismo está entre os campeões de casos positivos no mundo

O doping no ciclismo joga países como o Brasil no centro da discussão, mas é um problema mundial. Os números de um levantamento da Wada sobre os resultados analíticos adversos encontrados em 2017 pelas federações de esportes olímpicos de verão (dados mais recentes publicados até o momento) mostram que a modalidade foi a segunda com maior número de casos positivos, atrás apenas do atletismo. Futebol, levantamento de peso e wrestling completam o top 5.

Naquele ano, foram analisadas 23.575 amostras no ciclismo e 280 apresentaram irregularidades, o que corresponde a 1,2% do total analisado. No esporte líder do ranking, no entanto, o "aproveitamento" foi menor. Houve 295 casos positivos de um total de 31.483, o que corresponde a 0,9%.

Números de 2017, segundo a Wada (Arte: Marina Cardoso/Lance!)

A incidência de casos de doping no ciclismo em território brasileiro também tem lugar de destaque. De acordo com dados do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJDAD), a modalidade ficou em segundo em 2018 (11%) entre as que mais apresentaram resultados analíticos adversos encaminhados a julgamento, atrás apenas do futebol (30%). O top 5 é completado por canoagem (7%), handebol (6%) e luta de braço (6%).

Números de 2018, segundo o TJD-AD (Arte: Marina Cardoso/Lance!)

O CONTROLE ANTIDOPING

A Wada veta o uso de substâncias ou métodos que atendam a dois dos três seguintes critérios:

1) Tenham, sozinhos ou combinados com outras substâncias e métodos, potencial de aumento de performance esportiva;

2) Representem riscos reais ou potenciais à saúde do atleta;

3) Violem o espírito do esporte.

Os exames consistem na coleta de amostras de urina e/ou sangue a serem enviadas para laboratórios credenciados pela Wada, com a finalidade de identificar a presença de substâncias ou métodos proibidos.

Fuga, recusa ou falha em se submeter à coleta de amostras, posse de substâncias ou métodos proibidos, tentativas de adulteração e cumplicidade também são consideradas violações a regras antidopagem.

O CONTROLE NO CICLISMO

Os alvos da UCI

O Grupo Alvo de Testes da UCI é formado por atletas que estão entre os melhores do planeta. A entidade tem um órgão independente, chamado Fundação Anti-Doping para Ciclismo (CADF, em inglês), responsável por auxiliar no controle. A UCI determina as prioridades da CADF em termos de estratégias de testes.

Os alvos da ABCD

O Grupo Alvo de Testes da ABCD é formado por atletas que estão entre os melhores do Brasil. Segundo o órgão, eles passam por um controle mais rigoroso do que a média nacional, são submetidos com freqüência a controles de dopagem fora de competição e precisam fornecer informações de localização a cada trimestre. Um alvo da UCI também pode ser alvo da ABCD, no caso de competições no território brasileiro.

COM A PALAVRA

Jorge Bichara

Diretor de Esportes do COB

Meta do COB é levar educação para os atletas

Os casos de doping no ciclismo estão distribuídos mundialmente. Infelizmente, é uma modalidade que, ao longo dos anos, sofre com o problema disseminado. Vejo com bastante preocupação a atuação do doping dentro desse esporte, que é lindo e cada vez tem mais praticantes no mundo.

O modo de aumentar a quantidade de atletas no alto rendimento é ter mais praticantes na base, seja pela promoção do esporte, por questões relacionadas à sustentabilidade ou pelo próprio atrativo da bicicleta.

Conversamos algumas vezes com a CBC sobre essa questão. Eles têm consciência dos problemas de imagem que o doping pode gerar para a modalidade e do risco de perdermos potenciais atletas. A proposta do COB é de levar educação. Eles precisam buscar conhecimento dos riscos que assumem ao, por exemplo, ingerirem suplementos.

Há mal-intencionados em todos os segmentos da sociedade. No esporte, não é diferente. Esses têm de ser combatidos com métodos de inteligência. Temos entidades para isso.

COM A PALAVRA

Marcelo Franklin

Advogado, especialista em casos de doping

O Brasil e o mundo: duas realidades

O doping no ciclismo é um problema mundial. É um dos esportes com maior incidência de casos. Está no top 3. Mas não podemos confundir a realidade mundial com a do Brasil. O que vimos com o Lance Armstrong, que tinha um programa específico para não ser pego, de fazer transfusões na beira da pista ou, recentemente, no caso do Chris Froome, de gastar milhões para desacreditar os argumentos da Wada, definitivamente não é a realidade brasileira.

Realmente, existe um problema aqui, mas não vejo com alarmismo. Lá fora, é muito mais grave. Há uma indústria de profissionais, contratados para fazer medições e verificar o tempo de excreção da substância no organismo para o atleta não ser pego. No Brasil, os atletas não têm nem recursos para isso.

Pega mais aqui a questão da falta de educação antidopagem. Isso resulta na utilização de médicos não especialistas no esporte, que não têm nada a perder. Hoje, existe até a previsão de suspensão ao profissional que passa substâncias proibidas ao atleta. Por isso, é muito importante escolher a pessoa certa.

ALGUNS CASOS RECENTES NO CICLISMO BRASILEIRO

Funvic/São José dos Campos

Caio Godoy, ex-Funvic, foi suspenso por doping (Foto: Reprodução)

A Funvic/Team Soul Brasil Pro Cycling foi suspensa pela UCI duas vezes, em 2017 e em 2018, por casos de doping, e perdeu a licença Pro Continental. O time teve, no período, três suspensos: Caio Godoy (cocaína), Roberto Pinheiro da Silva (alterações no passaporte biológico) e André Almeida (alterações no passaporte biológico). Os atletas se disseram inocentes. Em 2019, a equipe se mudou para Pindamonhangaba, com a proposta de formar novos ciclistas.

Kleber Ramos

Kleber testou dias antes da Rio-2016 (Foto: Divulgação/Tour do Rio)

O paraibano Kleber Ramos, que também chegou a integrar a Funvic, testou positivo em exame fora de competição dias antes da Olimpíada do Rio-2016 para CERA, a terceira geração da EPO. Ele pegou quatro anos de suspensão e não pode competir até o dia 9 de agosto de 2020.

Kacio Freitas

Kacio Freitas pode perder medalha no Pan (Foto: Abelardo Mendes Jr)

O mineiro, bronze no ciclismo de pista no Pan de Lima, em agosto, foi flagrado em exame antidoping durante o evento com SARMs (moduladores seletivos do receptor de androgênio). Ainda será julgado e pode perder o resultado, obtido na prova de velocidade por equipes. Ele se declarou inocente em postagem nas redes sociais, no final de agosto, quando os boatos começaram a circular.

Clemilda Fernandes

Clemilda Fernandes é reincidente (Foto: Jonne Roriz/COB)

A UCI anunciou no início deste mês a suspensão provisória da segunda melhor brasileira no ranking da UCI (223ª no geral), por adulteração. Em 2009, a atleta já havia sido flagrada com EPO, durante o Giro Rosa (versão feminina do Giro D'Itália). Aos 40 anos, ela estava convocada para disputar o Mundial de Estrada, que começou no domingo, em Yorkshire (ING), mas teve o nome retirado da convocação. Sua família tem histórico de outros dois casos de doping.

Flávia Paparella

Flávia cumpriu apenas seis meses de gancho (Foto: Divulgação)

A melhor ciclista de estrada do país (108ª no ranking da UCI) cumpriu seis meses de suspensão por uso de higenamina, um estimulante para queima de gordura, e retornou a tempo de disputar o Mundial. Ela, que foi testada durante o Campeonato Brasileiro, em junho do ano passado, alegou ter consumido um produto oriental com a substância. Os argumentos da defesa foram aceitos e ela conseguiu evitar um gancho maior. Quando comprovado o uso intencional, a higienamina pode dar até quatro anos de suspensão.

Fuga em Goiás

Reprodução/Twitter

Em julho, o segundo e o quarto colocados da categoria B1 do Brasileiro Master de estrada, em Senador Canedo (GO), não foram ao pódio, justamente em evento que teve a presença de fiscais da ABCD para fazer a coleta de urina. Eles foram desclassificados e seus nomes não aparecem na súmula oficial da CBC.

O ciclismo de estrada concentra o maior número de casos de doping na modalidade. Problema é mundial (Foto: AFP)
O ciclismo de estrada concentra o maior número de casos de doping na modalidade. Problema é mundial (Foto: AFP)
Foto: Lance!
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