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Jogos de Paris

Campeões olímpicos e mundiais relatam como a pandemia afetou os ciclos para Tóquio-2020 e Paris-2024

Treinos improvisados, reorganização de calendário e preocupação com a base: atletas contam suas histórias no auge da covid-19 e na sequência dela e projetam próximos passos

3 ago 2022 - 15h11
(atualizado às 16h21)
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Quase um ano depois de Tóqui0-2020, os melhores esportistas do mundo já estão no que seria a metade do intervalo até a próxima Olimpíada com a proximidade de Paris-2024. Por causa da pandemia de covid-19, os últimos Jogos foram disputados mais tarde do que o normal, em 2021, e isso mudou o chamado ciclo olímpico - que foi praticamente "emendado".

Além do peso que tantos cancelamentos de competições na última crise de saúde mundial trouxe às suas rotinas, o cronograma de treinos também foi afetado e o calendário modificado. Como resultado, os atletas tiveram de adaptar seu dia a dia, elaborar uma preparação técnica sem campeonatos importantes no caminho - ou até descansar e aproveitar o desgaste menor com um ano a menos de atividades.

As temporadas que precedem um evento tão importante como as Olimpíadas são, antes de tudo, de definições. Os competidores devem planejar para quais eventos vão, a abordagem que terão em cada um deles, cumprir obrigações com seus clubes e revisar todo o aspecto financeiro com patrocinadores. Para entender como foi o conturbado encerramento do ciclo até o Japão e o caminho até a França, o Estadão entrevistou os atletas Arthur Zanetti, campeão olímpico na ginástica artística, Flávia Saraiva, campeã da Olimpíada da Juventude na mesma modalidade, Cláudia Santos, campeã mundial no remo paralímpico, e Petrúcio Ferreira, bicampeão paralímpico no atletismo e recordista mundial dos 100 e 200 metros rasos.

Esporte interrompido

No começo de 2020, restavam apenas alguns meses para o começo dos Jogos de Tóquio. Muitos atletas estavam na fase final de preparação, mas a covid-19 rapidamente se espalhou pelo mundo e a OMS (Organização Mundial de Saúde) decretou pandemia, o que resultou no fechamento de ginásios, centros de treinamento e, não menos importante, no cancelamento de competições. Zanetti, que buscava sua terceira medalha consecutiva, se viu sem campeonatos para disputar até a volta gradual à normalidade. "A gente estava em Baku em 2020 (na Copa do Mundo). Eu, deitado na cama para dormir, recebi a notícia da competição ter sido cancelada. Foi mais ou menos em março de 2020 isso, e só voltou em uma Copa no Catar (em junho de 2021), onde nos adaptamos para o Japão".

Durante o período em que as competições esportivas viviam momentos de incertezas com interrupções, adiamentos e cancelamentos, o Comitê Olímpico do Brasil (COB) e seus atletas tiveram que correr atrás de "pequenos ciclos" para não ficar sem treinar, o que foi muito desgastante. "Depois de Tóquio, a gente pode fazer qualquer coisa", disse Paulo Wanderley, presidente do COB, em entrevista recente sobre os próximos Jogos.

Flávia, ouro nas Olimpíadas da Juventude de 2014 e em etapas da Copa do Mundo, teve de dar um jeito de gastar a energia de uma atleta de um esporte tão movimentado e explosivo. "Eu treino 7 horas por dia. Não aguentava mais ficar em casa o tempo todo. Meu lar virou um ginásio: tinha bicicleta, mini trave… a gente foi se adaptando, mas nada comparado a um ginásio. A gente requer muito espaço, e em casa não tem", diz.

"Eu quebrei o lustre (de casa), o sofá ficou todo amassado, a parede estava cheia de marcas de pé… Na pandemia, treinava junto à Rebeca (Andrade), então ficávamos conversando no meio do treino e levávamos esporro. A gente estava tentando se adaptar. Fizemos aula de dança… de tudo, realmente". No caso de Cláudia, que conquistou seu primeiro título mundial em 2007, foi um pouco mais difícil, pois treinar remo em casa não é uma tarefa simples. "A gente perdeu esse contato com a água", relembrou. "Agora, a gente vai voltar a tê-lo. Eu tenho um simulador e adaptei minha casa no tempo de covid, praticamente montei uma academia. Mas você perde muita técnica de água assim".

Zanetti viu um calendário "quebrado" pela frente. "Todos os ginásios fecharam e assim ficamos um bom tempo sem ir para lá. Depois, abriam com restrições. Treinávamos uma ou duas semanas e já fechava de novo porque os casos aumentavam. Tudo o que íamos conquistando era interrompido", relembrou o ginasta, que definiu esse período como uma "onda", prejudicial a corpo e mente. Para ele, o ciclo mais curto não é tão prejudicial a atletas mais velhos e experientes quanto foi a pandemia, por ser um ano a menos de desgaste.

Petrúcio, atualmente o atleta paralímpico mais rápido do mundo, tem a mesma opinião, mas tanto ele quanto Arthur se preocupam com a janela de evolução que os mais jovens podem perder. "Há vários novos competidores desde o ciclo de 2016", disse o velocista. "Eles podem, sim, aparecer, mas como ficou um pouco mais apertado, não sei se vão ter esse espaço."

Experiência

Apesar da idade ser um fator, ter recursos para lidar com adversidades do tipo pode estar dentro das características de um atleta. No caso da ginástica artística, a maioridade é atingida muito cedo. Atualmente, Flávia tem apenas 22 anos, e mesmo já sendo considerada experiente no esporte, sabe como não perder o momento de aprender fundamentos essenciais e juntou isso à fase que considera sua atual, a de "lapidar" as habilidades. "Apesar de eu ter muita energia, já vejo diferença. Eu não repito a quantidade que fazia quando tinha 16, mas à medida que vou ficando mais madura, faço os elementos da melhor forma. Ou seja, acaba que eu nem preciso repetir tanto como quando era mais nova."

"Cada menina tem um tempo, eu treino com a Jade (Barbosa, campeã pan-americana em 2007) e ainda a vejo aprendendo elementos. Eu mesma aprendi um novo na paralela. Tudo depende do que você vai fazer. A Jade, por exemplo, já é muito adaptada com o corpo dela e também tem muito talento. Depende de vários fatores", diz. No entanto, ela reforçou que o processo não é igual para todos. "Acho que alguns atletas perderam (a janela) e estão agora correndo contra o tempo para aprender os novos elementos".

No atletismo, em questão de evolução, os competidores buscam o que Petrúcio define como "pico", que é nada menos que os resultados esperados em cada competição preparatória para as Olimpíadas. Mesmo sendo um atleta mais experiente, perder oportunidades de encontrar seus melhores resultados ainda prejudicou sua preparação e ele teve que se reorganizar também para o próximo ciclo - e como detentor de recordes mundiais, sabe bem da importância dessas "metas". "Em 2020, recebi um convite para correr na Diamond League, que é uma competição focada também nas paralimpíadas, e infelizmente acabei não participando".

"De início, acabou ficando um pouco estranho para a gente. A preocupação era se os Jogos de Tóquio iriam acontecer e, se fossem, como é que eu ia estar me preparando. O ciclo a seguir era pensando já no pós-Japão. A gente teria o campeonato mundial de 2021, que foi adiado para 2022, mas infelizmente acabou não ocorrendo". Assim como Zanetti, que em sua idade atual analisa os melhores eventos a ir de acordo com seu objetivo, o velocista só voltou às pistas internacionais nas próprias Olimpíadas. "Quanto mais competições (e opções para selecionar), melhor para o ciclo".

O calendário menos "recheado" também foi um fator no cronograma de Cláudia, que até listou quantos campeonatos não puderam ser disputados. "Mundial, copas do mundo - que são três etapas - e Sul-Americano, que ficou um ano para trás". No entanto, ela é clara quanto a qualquer desvantagem que poderia ter em relação às suas rivais: "É aquele ditado: 'Não é só para mim, é para todos os países'. Agora, a gente tem que focar daqui para frente e esse ano já tem um mundial na República Tcheca, em setembro".

Hierarquia de forças

Independente das interrupções em 2020 e o ciclo olímpico para Paris ser diferente em alguns aspectos, todos os entrevistados seguem a mesma linha da remadora e não acreditam em uma reviravolta na hierarquia de forças, mas que podemos ver competidores com abordagens diferentes e até mais fortes.

Cláudia vê a resistência como fator chave no remo, Petrúcio acredita que as próximas Paralimpíadas irão "surpreender o mundo com seus resultados e atletas no auge", Flávia crê que a maneira como a FIG (Federação Internacional de Ginástica) lidou com o ciclo manterá o esporte estável e Zanetti enxerga ele próprio e seus rivais na mesma condição, com uma ressalva: "Alguns países que treinam concentrados no próprio centro, como China e Rússia, podem ter vantagem" - ou seja, mantiveram uma regularidade mesmo na pandemia.

É muito difícil encontrar alguém que não fique ansioso pelo começo de cada Olimpíada, mas os dias em que o maior evento esportivo do planeta é disputado são apenas o "ápice". Para os que buscam a tão sonhada medalha, começa logo no primeiro treino, às vezes com até oito anos de antecedência. Para chegar em seu auge nos Jogos, os competidores devem buscar a perfeição, e qualquer mexida nesse ciclo pode mudar completamente o caminho de cada um. Passar por uma crise de saúde mundial e ainda conseguir adaptar toda uma preparação minuciosa - para dois eventos desse porte - mostra a força de um atleta, que se expande para além dos estádios e ginásios.

Estadão
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