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Futebol Internacional

Uefa se curva aos interesses políticos ao barrar cores LGBT

Enquanto torcedores da Hungria destilam racismo e homofobia nas arquibancadas de Budapeste, federação europeia decide não comprar briga política com o ultraconservador Viktor Orbán, primeiro-ministro do país

23 jun 2021 - 01h41
(atualizado às 08h13)
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Quando Alemanha e Hungria entrarem em campo pela última rodada da fase de grupos da Euro 2020, nesta quarta, dia 23, a Uefa terá perdido a oportunidade histórica de mandar uma mensagem poderosa ao mundo. Ao rejeitar o pedido da câmara de Munique para iluminar a Allianz Arena com as cores do orgulho LGBT, a entidade máxima do futebol europeu contradiz seu próprio discurso de defesa da diversidade. E acolhe o apelo das autoridades húngaras que legitimam a homofobia em seu próprio território.

Bandeiras do arco-íris no Rockfeller Center, em Nova York
26/06/2020 REUTERS/Mike Segar
Bandeiras do arco-íris no Rockfeller Center, em Nova York 26/06/2020 REUTERS/Mike Segar
Foto: Reuters

Na última semana, o parlamento da Hungria aprovou lei antipedofilia, que teve seu texto alterado para enquadrar criminalmente conteúdos de educação sexual e representações LGBTs para menores de 18 anos. É apenas mais um ato em uma série de restrições aprovadas pelo governo do ultraconservador Viktor Orbán, criticado por ativistas e líderes da União Europeia.

Do lado húngaro, celebração pelo veto da Uefa

A federação se justificou dizendo ser uma 'organização politicamente e religiosamente neutra', enquanto o ministro das Relações Exteriores da Hungria, Péter Szijjártó, afirmou: "É muito nocivo e perigoso quando alguém tenta misturar política e esporte. Houve algumas tentativas de fazer isso na história mundial e essas acabaram muito mal".

É curioso que Szijjártó queira afastar política e esporte, quando seu chefe, o primeiro-ministro húngaro, é justamente um dos líderes europeus mais apaixonados por futebol. Orbán controla e incentiva a modalidade no país como plataforma de seu plano político. Aliados do governo estão no comando de nada menos do que 10 dos 12 times da primeira divisão húngara.

Os brasileiros que assistiram aos primeiros jogos da Hungria na Euro (a derrota para Portugal e o surpreendente empate com a França) certamente se espantaram com o fato da Puskás Arena, em Budapeste, receber público máximo nas partidas: mais de 65 mil pessoas, sem qualquer respeito de distanciamento ou uso de máscara em meio à pandemia de covid-19.

O estádio é o único entre as 11 sedes da Eurocopa que recebeu aval para encher até o talo na primeira fase. Fruto do controle que Orbán exerce sobre a federação húngara e o bom relacionamento com a Uefa. Algo parecido com o que se viu do lado de cá do Atlântico, quando o governo brasileiro de Jair Bolsonaro, num piscar de olhos (ou de e-mails trocados), aceitou um acordo costurado às pressas entre CBF e Conmebol para trazer a Copa América ao País.

Por enquanto, na Eurocopa, os torcedores húngaros não decepcionaram seu chefe de governo. Grupos extremistas levaram cartazes racistas e anti-LGBTQ aos jogos da seleção, além de entoar cânticos discriminatórios durante as partidas. A Uefa abriu investigação para apurar as ações. A imprensa francesa acusa torcedores da Hungria de imitarem macacos a cada toque na bola de Mbappé e Benzema.

Após o suado empate por 1 a 1 com a França, jogadores e espectadores da Hungria no estádio celebraram como um feito histórico. Uma demonstração do forte sentimento ultranacionalista dominante no país, que tem eleições marcadas para 2022.

O azar de Viktor Orbán é esportivo. A Hungria caiu no grupo da morte, com o mais recente campeão europeu, Portugal, além dos dois últimos campeões do mundo, Alemanha e França. E, portanto, as ofensivas mensagens da torcida húngara não devem passar da primeira fase do torneio.

Do lado alemão, a Uefa propôs que a arena seja iluminada com as cores do arco-íris em datas celebrativas. "Pode ser em 28 de junho - o Christopher Street Liberation Day (dia do Orgulho) -, pode acontecer entre 3 e 9 de julho, que corresponde à semana do Christopher Street Day em Munique", sugeriu no comunicado. Em campo, contra a Hungria, o goleiro Manuel Neuer vai usar novamente uma braçadeira com os seis tons do orgulho LGBT.

Não espanta que o futebol da Alemanha mostre solidariedade à causa. O único jogador da história abertamente gay a disputar uma Copa do Mundo masculina até hoje é alemão: Thomas Hitzlsperger. O meio campista, é claro, só deixou pública sua condição sexual após se aposentar, por medo de que a homofobia atrapalhasse a carreira. No início do ano, um grupo de 800 jogadores do país aderiu a uma campanha de apoio público a atletas LGBTQ.

Menos de um século após o regime nazista, Berlim se tornou para muitos a capital do orgulho gay, como sugere o historiador Robert Beachy em Gay Berlin: berço de uma identidade moderna, livro lançado em 2015.

O Bayern, clube proprietário do estádio, bateu o pé em sua posição contra o veto da Uefa. "Mente aberta e tolerância são valores fundamentais que a nossa sociedade e o Bayern representam", afirmou Herbert Hainer, presidente do time bávaro, em comunicado.

Em janeiro, a Uefa, hoje presidida pelo esloveno Aleksander Ceferin, lançou o excelente documentário Outraged, que traz conversas sobre diferentes formas de preconceito com grandes nomes do futebol. Paul Pogba, José Mourinho e Megan Rapinoe são alguns dos entrevistados.

É uma prova de que, da porta para fora, a federação europeia tenta construir uma imagem baseada nos valores da diversidade. Mas o veto à ação na Allianz Arena expõe o que sempre se soube: da porta para dentro, o interesse político de figuras como Orbán ainda dá as cartas.

*Repórter e social media do Estadão, autor de 'Bicha!: Homofobia Estrutural no Futebol'

Estadão
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