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Putin usa Copa do Mundo para passar mensagem ao resto do mundo

Kremlin usou espiões, destruiu computadores para impedir investigações e transformou evento em uma máquina de propaganda

11 jun 2018 - 07h04
(atualizado às 07h04)
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Ele escolheu as cidades sedes, ele indicou quem construiria os estádios, mandou executar centenas de cachorros que desde o final da Guerra Fria perambulavam pelas ruas das cidades russas, prendeu opositores e até ensaiou firulas com a bola, em um vídeo fortemente editado pela Fifa.

A Copa que está prestes a ocorrer pode não saber ainda quem venceu em campo. Mas, fora dele, o presidente russo, Vladimir Putin, quer mostrar ao mundo que seu país, mesmo sob sanções internacionais, não irá ceder. Enquanto a bola estiver rolando nos campos russos, o que está em jogo para o Kremlin é sua reputação como potência e uma mensagem clara: o isolamento imposto pelo Ocidente contra Moscou não funcionará.

Essa não será a primeira Copa do Mundo repleta de polêmicas políticas. Mas poucas têm o título de ser uma sede sob embargo econômico.

A partir de 2014, o Kremlin passou a ser alvo de pressão do Ocidente diante da anexação da Crimeia. Na prática, isso impediu que empresas russas pudessem manter diversos negócios com o mercado financeiro internacional, chegando a impedir certas importações. Ao Estado, um dos principais organizadores do torneio, Alexey Sorokin, garante que tal cenário permitiu que Moscou mostrasse a dimensão de sua capacidade de autonomia.

"Se algo ocorreu foi o fato de que as sanções nos levaram a trabalhar de forma ainda mais dura e melhor", disse. "Cumprimos nossas promessas. A Rússia é um país com imensos recursos e fizemos um uso muito eficiente de nossos meios e possibilidades", insistiu.

Mas, se não bastasse a Crimeia, o apoio de Putin ao presidente da Síria, Bashar Al Assad, os escândalos dos ex-espiões envenenados no Reino Unido, ou mesmo as suspeitas de envolvimento russo nas eleições nos EUA, criaram um profundo clima de desconfiança e crise entre o Ocidente e Moscou.

No esporte, as revelações de um "doping de estado" organizado pelo ex-chefe do comitê da Copa do Mundo, Vitaly Mutko, tampouco ajudou. Os russos foram em parte banidos dos Jogos Olímpicos e o êxito que haviam atingido durante a Olimpíada de Inverno de 2014 provou ser uma fraude.

Diplomatas ouvidos pelo Estado apontam que, agora, há dois principais motivos para que Putin queira fazer de tudo para que a Copa seja um sucesso. O primeiro é o doméstico. Em março, ele foi eleito para mais um mandato, com 77% dos votos. Mas observadores internacionais apontaram para falhas e seu principal concorrente, Alexei Navalny, foi impedido de concorrer.

Outra pressão doméstica que ele sofre é a econômica. As sanções internacionais e o baixo preço do barril de petróleo levou o mercado russo a uma recessão e, apenas agora, o FMI destaca que a economia local poderá crescer em 1,7%. Mas, pelas ruas de Moscou, não são poucos os que se queixam de que o desemprego ainda é elevado, enquanto o custo de vida não para de crescer.

Na última quinta-feira, num programa ao vivo na TV russa, Putin recebeu uma ligação de um motorista de caminhão que reclama do preço da gasolina num país que tem como pilar de sua economia a Gazprom. O presidente russo respondeu. "É inaceitável".

Mesmo entre as empresas que organizam o Mundial, a reclamação é de que existem duas Copas do Mundo. "Uma é a oficial, onde não falta nada. Outra é a real, com atrasos de pagamentos e promessas de que o dinheiro chegará, talvez depois da Copa", contou um empresário russo ao Estado. Sob condição de anonimato por temer perder contratos, o executivo é o responsável por construir campos de treinamentos para as 32 seleções, com um custo de US$ 2 milhões cada. "Por enquanto, estou tirando dinheiro do bolso para bancar as obras", disse.

A movimentação de cerca de 500 mil turistas estrangeiros, portanto, poderia ser uma injeção importante para a economia local, ainda que todas as projeções apontem que o impacto de longo prazo seria reduzido.

Uma segunda dimensão do papel da Copa para Putin será em sua imagem ao mundo. Mas um torneio internacional impecável ajudaria a reforçar sua imagem de que a Rússia não se sente intimidada pela pressão internacional. Sob o pretexto da segurança, protestos serão absolutamente proibidos. A repressão contra a imprensa aumentou e dezenas de opositores foram presos.

O instrumento de política externa, porém, corre o risco de ser em parte questionado. O governo do Reino Unido deixou claro que considera que a Copa do Mundo na Rússia serve como o "mesmo exercício de relações públicas que Adolf Hitler usou em 1936 nos Jogos Olímpicos de Berlim". As declarações foram feitas pelo secretário de Relações Exteriores britânico, Boris Johnson, respondendo em um debate com o parlamentar Ian Austin, que sugeriu que o Mundial seria uma forma de abafar um "regime corrupto".

Austin, no debate em uma das comissões do Parlamento, indicou que "a ideia de Putin dar a taça ao capitão do time vencedor o enche de horror" e que o Mundial seria um exercício de relações públicas de um regime "brutal". "Sua comparação é do que vai ocorrer em Moscou na Copa, e acho que a comparação com 1936 está certamente correta", insistiu Johnson.

O governo britânico anunciou que não enviará um representante para o jogo de abertura e as festas que Putin promete organizar para a abertura, dia 14 de junho. O Estado apurou que convites foram formulados para todos o governos dos 31 times presentes no Mundial, mas também para aliados de todo o mundo.

Os ingleses, porém, não estarão sozinhos no boicote. O governo polonês de Andrzej Duda confirmou que ele não pensa em viajar para Rússia.

Outro que pode evitar Moscou é o governo da Islândia, sensação da Eliminatória e pela primeira vez num Mundial. Durante a Eurocopa de 2016, ministros islandeses se misturaram aos torcedores nos estádios franceses. Agora, consideram um boicote, ao lado de outros governos, como o da Suécia e Dinamarca.

Em Moscou, as indicações de um boicote por parte dos governos foram ironizadas pelos políticos russos. "Só podemos lamentar pelos membros do governo da Islândia, que teriam adorado torcer por seu time", disse o deputado Mikhail Degtyarev, chefe da comissão de Esportes do Parlamento russo.

Mas dados obtidos pelo Estado revelam que, de fato, o número de torcedores europeus é relativamente pequeno, mesmo diante de uma distância curta de voo entre as capitais europeias e Moscou, ou São Petersburgo. Segundo a Fifa, mais brasileiros e colombianos compraram ingressos para a Copa que franceses ou alemães. Peruanos e chineses, por exemplo, compraram mais ingressos que os ingleses.

ESFORÇO

Com ou sem os europeus, o Kremlin determinou que tudo fosse feito para garantir uma imagem de perfeição. Com gastos de US$ 14 bilhões, o Mundial de 2018 será o mais caro da história. Muitos dos contratos foram cedidos à empresa do aliado de Putin, Gennady Timchenko. Ex-engenheiro de um dos ministérios no regime soviético e hoje com uma fortuna acumulada de US$ 16 bilhões, o empresário está na lista da Casa Branca de russos que sofrem embargos e sanções por seu papel dentro do governo de Putin depois da anexação da Crimeia. Mas foi beneficiado por contratos para a construção de vários estádios, entre eles Nizhny Novgorod e Volgograd.

Diante da falta de patrocinadores internacionais para a Fifa, o Kremlin ordenou que suas estatais entrassem na Copa como parceiros da entidade esportiva. Entre os patrocinadores estão empresas como as ferrovias russas ou a estatal do setor de diamante, a Alrosa. O dinheiro ainda foi direcionado por meio de empresas como Alfa-Bank, Rostelecom e a Gazprom.

Antes mesmo de vencer a eleição na Fifa em 2010, espiões do FSB (antiga KGB) receberam ordens para descobrir qual seria a estratégia dos concorrentes e garantir a vitória do Kremlin.

Tudo ainda foi feito para que não se deixassem brechas para um questionamento legal. O comitê da campanha de Moscou prestou toda a ajuda necessária para que a Fifa realizasse sua investigação sobre uma eventual compra de votos por parte dos russos, em 2010. Mas a entidade abandonou o trabalho depois que foi descoberto que os computadores onde estavam armazenados os dados foram simplesmente destruídos pelo Kremlin.

Assim, enquanto o processo levou à prisão de cartolas pelo mundo, a queda de Joseph Blatter, suspeitas sobre o Catar e até suicídios, só Moscou atravessou a crise sem ser abalada.

Ken Bensinger, autor do livro "Red Card: How the U.S. Blew the Whistle on the World's Biggest Sports Scandal", conta que quem primeiro detectou que Putin estaria disposto a tudo para a Copa foi Christopher Steele, um ex-espião britânico do MI6 na Rússia e que havia sido contratado pela campanha da Inglaterra para sediar o Mundial de 2018 para que apurasse tudo o que soubesse dos russos.

Na primavera de 2010, Steele traria informações preocupantes: Putin, que jamais se interessou pela bola, estava focado no futebol. No fundo, o interesse não era pelo esporte. Mas usando a Copa como um instrumento para "projetar o poder de seu país e dele mesmo". "Ele estava determinado a vencer a eleição a qualquer custo", escreveu Bensinger.

Segundo ele, Steele acumulou dados apontando que o governo russo e oligarcas aliados a Putin distribuíram presentes de luxo, peças de arte e até contratos de gás nos meses que antecederam a votação, na Fifa. Até mesmo o bilionário Roman Abramovich foi enviado para "conversar" com Joseph Blatter, o então presidente da Fifa.

Em dezembro de 2010, quando a votação ocorreu em Zurique para a escolha da sede de 2018, um dos principais delegados da campanha russa disse à reportagem do Estado que a vitória contra os ingleses, espanhóis e holandeses não era uma surpresa para Putin e sua equipe. "Já sabíamos. Só vocês no exterior achavam que poderiam ganhar", disse. Na primeira fila no teatro que recebeu a votação, Abramovich não demonstrava qualquer tipo de emoção diante do resultado aparentemente esperado.

Mas o princípio de garantir sucesso a todo custo também precisava passar por um resultado aceitável dentro de campo. Ninguém espera que os russos cheguem longe na Copa. Mas Putin tampouco aceitaria uma humilhação.

Assim, sete anos depois, em dezembro de 2017, quando o presidente russo presidiu sobre o sorteio da Copa do Mundo em seu próprio palácio no Kremlin, o nome da Arábia Saudita foi retirado das bolinhas supostamente misturadas pela Fifa como sendo o primeiro confronto do Mundial contra os anfitriões.

Entre todos os 32 times da Copa, apenas os sauditas estão abaixo dos russos no ranking e, não por acaso, a elite russa que estava no evento não aguentou a risada. Putin, ex-agente da KGB, permaneceu imperturbável.

Estadão
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